domingo, 12 de junho de 2016

Marco António III

Ali ficou vendo a luz mudar. Primeiro acariciara os tacos de madeira da entrada da cozinha, depois lentamente como numa valsa desconhecida foi-se deslocando, graciosa, o bar que era de sua avó portuguesa, a livraria magrinha magrinha mas que exibia orgulhosa os clássicos em edições de bolso, a mesa de jantar com suas frutas de plástico, a televisão velha com o seu crochet encardido...sedutora saíra pela janela, escondendo-se num farol de rua, desmaiado e abafado como quem denuncia uma mentira.
Não se pode dizer que pensava sobre a frase do estudante...para pensar fazem falta palavras. Naquele silêncio ele repetia músicas sem parar, como que tomado por um frenesim do passado. As músicas que escutava eram fragmentos da sua infância...o meu chapéu tem três bicos, o jardim da celeste, atirei o pau ao gato, ciranda cirandinha...frases soltas da sua professora primária, da sua avó, do seu avô, frases soltas de ninguém em particular...um padeiro, a peixeira. Fragmentos do passado que como estilhaços de granada feriam algo escondido nele.
Pensou por um momento que pensaria alguém que o encontrasse ali, naquele escuro, naquele silêncio. Imaginou que a pessoa saltaria em sobressalto, que se agitaria e se indignaria com ele por esse comportamento bizarro. As pessoas não gostam de excentricidades. Só para as estrelas lá em Hollywood ou para a Ana Maria Braga. Taxista, no escuro, pensando, não dá. Ninguém chegaria de surpresa acabou por pensar, a diarista vinha só às quintas, e pela forma como ela limpa nem se daria conta se ele estivesse ali, estático de morto ou estático de atormentado.
Porque lhe tinha parecido tão estranho que aquele moço, visivelmente perturbado em sua falta de sono, lhe dissesse que não "pegava" com ele ser taxista?! Acaso "pegar" era coisa que lhe interessasse?! Acaso um jovenzinho intoxicado em café Pilão forte saberia o suficiente das coisas da vida como para se lançar em comentários alheios?
A resposta retornava a mesma...algo que uma verdade tinha sido dito. Uma verdade do afecto, inesperado, gratuito, improvável entre um passageiro e seu condutor.
E essa verdade encontrara-o, por mais cliché que pareça, encontrara-o nu.
Haveria verdade nessa verdade?
Pode-se saber sobre a natureza do outro, assim, num piscar de quilómetros?
Era difícil pensar com um carrossel de músicas antigas latejando os neurônios, aquelas músicas, porque raio se apresentavam agora, ali?
Pensou ver a novela. Malhação? Já passara da hora. Mesmo sem ele, essa tarde conseguiriam visualização recorde. Algo que lhe esvaziasse a cabeça. Que a silenciasse.
Preciso, acendeu a luz, a música e olhou a geladeira.
Não...
Era tema de palavras.
Apagou a música, acendeu outra luz.
Pegou num livro, não lido. Abriu.
"(...)para levar uma vida que, por ser destituída de esperança, tornava-se também uma vida sem qualquer espécie de ressentimento."*
As pombinhas da catrina voaram e a frase ficou ali repetindo-se.

* O primeiro Homem. Albert Camus

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