segunda-feira, 30 de maio de 2016

Acordei meio acordado
de um sonho que não havia sido sonhado.
Tropecei assombrado,
no impedimento que não tinha ainda chegado.
Caí inteiro de peito aberto,
e um espelho terminou,
de beijar o sonho, que ninguém sonhou.
Mordi a língua que não dissera nada,
com um dente que se quebrara.
O dente ficou na língua,
cravando a lembrança do que não estivera.
Acordei meio adormecido
para uma ironia sem sentido.

sábado, 28 de maio de 2016

não tentar em casa, outra versão

Certas loucuras, estão repletas de um sentido outro.
Lucidez não compartilhada, inacessível. Espécie de misticismo da racionalidade.
Sabe tão bem, por momentos, ver o mundo como ele é, sem fantasias, historinhas, versinhos, ideologias. O suor de quem construíu estes caminhos versus o perfume da menininha no início do mês. O saco do futebol dos homens que se negam ao tempo que passa, resistência que me agrada, simpatizo. Não serve de nada.
Ver a realidade, com sabor de sangue na gengiva, demanda ação. O animal que vive em nós, morre de fome no pensamento, ainda assim, planeia.
Há duas semanas venho seguindo a mulher de casaco amarelo. Onde vive, onde trabalha, copo do strabucks Genoveva, tem nojo do botão de abrir as portas. Não é por isso que a vou matar . Vou tirar-lhe a vida que arruína vidas. Live and let die gritava Paul McCartney a plenos pulmões, não vives deixando viver, alguém tem que dar um jeito nisso. Justiça? Se necessitasse justificar-me…a mulher do casaco foi confrontada por uma outra mulher, amigas. A Genoveva dormia com o marido da outra, lera uma mensagem…chorava. Telenovela de cordel no vagão das oito. É por isso que a mato? Em parte. A justiça que não se conseguiu reclamar apenas chamou a minha atenção. Amarelinha gosta de passar na frente, de velhos, de deficientes, de crianças, de grávidas. Espera depois da limitação, acotovela, sempre procurando a sua vantagem…é por isso? Quem sabe…ela deve morrer. E pensar que serei eu a olhar no seu olho em seu derradeiro parpadear…traz-me paz, um alívio, um gosto de azeite e sal no pão da manhã. Imagino as minhas mãos naquele seu casaquinho, a força que terei que fazer, o seu pé apenas tocando o meu enquanto o imobilizo, ela caindo, deixando-me saborear a sua despedida.
Um assassinato como deve de ser. Penso nisso deleitada, adoro a perfeição. Não a conheço, nada me liga a ela. 
O metro fechando, sem câmaras …Um pequeno gesto para recolocar este universo fragilizado.
A sós, avanço para ela, os meus sapatos ecoam no túnel como um coração que palpita. Chego tão perto que sinto como cheira a limão, os cabelos a pantene, vem aquele gosto na gengiva, tudo faz sentido…previsível Genoveva. Respeito minha condição de vingadora, a lógica animal reconhece o humano…
Desculpe.
Que é?
Sua mãe vive?
Que pergunta é essa?
Seu pai, sua mãe… vive?
Não...
Aí está, o meu coração acelera-se, uma alegria invade-me, tenho sede. Ponho as mãos nos seus ombros, quase  peito, quero sentir o seu coração que lateja…Saboreio nos seus olhos, a perplexidade. Um grito que pede ajuda,enraivecido, ao mesmo tempo pede desculpa. Prendo o seu pé e empurro. A flexão do meu braço, como um pássaro libertando as asas. Oiço sua espinha.
Adeus Genoveva…
Ao longe o apito do trem.

Finalmente a paz e uma música que ecoa…“Ge- ne-ve- pas travailler, Ge- ne- ve- pas déjeuner, Je veux seulement oublier, Et puis je fume…”


Exercício de escrita criativa. Curso com Noemi Jaffe. Casa do saber.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

não tentar em casa

O ruído do trem que chega, o trem que vai. Não sei quem chega, não sei quem parte.
Colocaram a fita amarela para os cegos.
 Terão medo que algum cego caía sem querer na via?Ali à frente a clássica mulher que gosta de ter vantagem sobre todos. Na frente do traço amarelo. Fora de jogo se fosse bola.
 Será que ninguém pensa em empurrá-la? Que aconteceria se eu fosse lá e desse um empurrão?
Ela teria capacidade de resposta? Alguém saltaria para a salvar como o anjo de "puerta del angel". Será que se ela se deitar nas vias o trem passa por cima e ela sobrevive, como nos filmes? Será que eu iria preso? Gide dizia que era o assassinato perfeito. Nenhuma ligação entre a vítima e o assassino. Aqui o problema são as testemunhas...Teria tempo de fugir? Quero fugir? Qual seria a pena? Dez anos de prisão? Será que prisão é tão insuportável mesmo? Isto não é pior?
Ai a cabra da mulher não deixa passar a velha da bengala.
Apressada, querendo tirar vantagem e com um casaco amarelo que fere a vista como estes guinchar de rodas enferrujadas fere o ouvido...ou é o travão? Infernal, ruído infernal do metro. De toda esta gente mastigando seus donuts com cafe com leite, suas sanduíches de queijo manchego, vão todos para la madre que los parió.
E se empurro a mulher, vou lá, encosto a mão devagar no casaco brilhante dela, e empurro. Vejo como ela cai, não sem primeiro resistir, esbracejar num gesto de urgência, emitir o som de um susto, de uma zanga e ao mesmo tempo um pedido de clemência, de perdão.
O sapato é barato, vai quebrar, vai resistir à passagem do comboio, vaso ruim não quebra.
O que tenho a perder? O que não está perdido ainda?
Será que ela tem algo a perder? Isso não importa, será que alguém a perderia?
 Casaquinho amarelo prepotente, tirando vantagem, sapatinho de verniz barato...não deve ter.
E a mãe, mãe não se recupera de perder filho.
Desculpe.
Que é?
Sua mãe vive?
Que pergunta é essa?
Seu pai, vive?
Não...
Vi o seu rosto perplexo, marcas de base alaranjada, olho verde bonito ainda, lentes de contacto secas, um trejeito de irritação no lábio superior, cheiro a canela com baunilha, o cabelo precisando de ser pintado. A raiz espreitando, única verdade no cacto em questão.
Coloquei a mão no casaco amarelo, como uma carícia no ombro, deslizei a mão do ombro para o peito, olhei no olho dela.
Senti nas minhas mãos um coração acelerar-se, não sei se surpreso ou assustado.
Uma calma imensa se abateu sobre mim.
Empurrei-a rápido, preciso.
Caiu de costas, e ficou de sapato perdido me olhando de volta.
Ninguém se mexeu na plataforma.
Agora eles tem câmaras, podem ver que fui eu, que se foda.
Veio o trem rápido tentando travar.
Respingou um pouco de sangue na minha camisa de flanela.
Abriram-se as portas, automáticas em sua frieza.
Passe você senhora, disse à tal velhinha.

Exercício escrita criativa
Procurar/
curar/
colar.

by  Tom

terça-feira, 24 de maio de 2016

Filomena VI

Dormi sem meias desde então. Dormi sem meias e de unhas pintadas. Fui à depilação.
Alisei o cabelo. Comprei um vestido novo.
Tudo isso enquanto planeio o roubo.
Entrarei bem vestida no banco, com o cabelo de outra cor e óculos de massa, irei ao balcão do Zé, logo depois do moço das quintas feiras.
Mostrarei uma arma de plástico que comprei sábado passado na vinte cinco de março, ah detalhe, levarei um vestido novo com mangas de sino, assim a arma será visível mas não será facil realmente observá-la.
Me passe a grana ó fulano...todos no chão que ninguém tenha ideias heroicas!
Tal e qual nos filmes, guardo a grana numa malinha de viagem luis de vito comprada na Liberdade. E aí o truque de mestre, sair pela porta dos fundos, que só a Ermelinda usa quando limpa a agência.
Ainda não decidi se regressar de ônibus, taxi ou uber.
Taxista faz muitas perguntas, mas uber fica com nosso registo...talvez ônibus, mas tenho que me trocar em algum lugar...devia ter aquela roupa, como nos filmes, que se dá um puxão e sai. De stripper mais ao menos.
Também preciso uma peruca, um lenço, ou um boné...roupa desportiva, o boné para dentro e a luis de vito? Ideal seria guarda-la.
Melhor ir de carro, estacionar perto, sem ser garagem...trocar-me no carro e guardar a mala. Voltar de ônibus. Vou buscar os meninos à escola. Peço a minha cunhada que os leve para casa deles, ela tem piscina é verão...volto em metro, pego o carro com outra roupa ainda...
Volto para casa tranquilamente, entro pela garagem que não tem câmaras e guardo a grana no cesto das maçãs.
Quando o Zé chegar a casa ofereço-lhe um café e uma fatia de torta de maçã...
Será eu está bem assim?
Ou é melhor ter um alibi bem sólido?
Vou no médico, peço que me desdobrem o recibo. Um nesse dia, outro para a tal quinta feira...não é grande alibi mas de repente dá jeito...
O que vocês acham? Vocês poderiam ser meu alibi, na tal quinta feira eu não fiz nada fora do comum, seria verdade. Eu assalto esse banco todos os dias na minha cabeça...



segunda-feira, 23 de maio de 2016

Filó e a sua ideia V

Fomos ficando sem pão, vimos a manteiga rançar, e o café que eu passei de novo secou nas taças de todos os dias. O relógio da cozinha acusou o atraso, e o Zé não se mexeu.
Não vais chegar atrasado?
Vou, mas está tão legal a nossa conversa...
Olhámos um para o outro...
Vi lá bem no fundo do seu olho castanho, algo amarelo, ou dourado, algo que entendi como uma faísca, como um fogo, como um incêndio. Algo que não estava quando estendi a toalha lavada sobre a mesa, algo que não estava ontem, nem anteontem, nem antes de antes de antes de antes de ontem.
Já teria visto algo assim no Zé?
Claro que sim, o dia em que nos beijamos pela primeira vez. A primeira vez que viu Mari e Amandinho. O dia em que comprou sem primeiro carro.
Lembro desse dia em especial...eu estava angustiada com entregar todos nossos pertences a um desconhecido, ainda mais para alguém que vendia um mercedes tão antigo, em terceira mão.
Zé no entanto, estava confiante, estava cheiroso, se vestira bem para a ocasião. Foi nesse dia que saímos a passear pela última vez juntos. Nós em nosso mercedes, que se chamou Carmem em honra da avó espanhola de José. Fomos com Carmen até uma lanchonete, tomámos cada um uma cerveja black, um supimpa com bacon extra, e sorrimos muito. Antes de voltar a casa parámos a beijar-nos, a sentir-nos, a saborear-nos como adolescentes em filme americano. Umas semanas depois descobri que Carmen tinha trazido um presente...tristemente os motores deste se apagaram bem antes dos dela.
Fora essa a última vez que os olhos castanhos de José falaram de fogo...
Quieto na sua cadeira, olhando-me fixamente, resistindo-se a levantar-se, a correr para o trabalho, para a hora marcada, para a rotina...José tinha percebido. José tinha lido a minha ideia. A ideia que eu não contaria jamais.
Fiquei a olhá-lo assombrada, no meu olhar não havia mentira. Não diria, jamais, nada.
E você nem sabe Filózinha como são alguns de nossos clientes habituais. Tem um moço que só veste de preto, sabe aquele preto que parece pele de vaca mas não é não...é imitação da riachuelo, sabe qual é? Esse vem toda a quinta feira, traz um monte de bilhetes dentro de um saco de papel da farmácia...sempre deposita quantias abaixo do limite a declarar, eu teria que chamar até o chefe para assinar ele o depósito, mas o cara traz sempre dois reais a menos...dois reais Filó. Por dois reais eu assino o depósito, por dois reais eu não posso fazer perguntas...e o cara nunca diz muito, magro magro, parece um vampiro, sabe como é Filózinha...como dos filmes. Esse é o de quinta feira, sem dúvida é quem deposita mais...

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O primeiro poema do meu filho Tom foi o seguinte. A Ana Lúcia perguntou-lhe se ele escrevia, respondeu que sim, poesia, sim...Então diz aí um poema Tom!
Resposta dele:

Lixo!

Hoje, pegou numa caneta e no meu caderno.
Queres desenhar ou escrever?
Escrever! 
Conto, romance ou poema?
 Poema! Quer ver um poema lindo, quer ver?
Quero...

Rabiscou isto...

O que diz filho?

Mãe...pai, vó!




Filomena e a sua ideia - Parte IV

Ele foi falando e eu fui ouvindo. Distraidamente fui pelando a cola de sapatos que ficou grudada no meu dedo, fui tocando com esse dedo, recoberto de cola, um pedacinho de miolo de pão.
Enquanto ele falava, e eu ouvia o que ele dizia, fui amassando devagarinho o miolinho, até ele em sua textura de borracha ser uma cobra, um caracol, um boneco de neve...
Filózinha, você está bem?
Era urgente disfarçar.
Comecei a contar da cola que saíra rápida do tubo, que acabara sujando a mesa onde colava a sola do sapato de Amandinho. Continuei falando, rápida, sobre o pão que estava cada vez mais caro, sobre como todo o mundo reclamava da Dilma mas agora vamos todo ver como fica tudo igual, como o moço da entrega da fruta contou que tinha dezasseis anos e foi arrumar filho, já viu se isso acontece com nossos meninos? E segui desbobinando um monte de lugares comuns.
Quando senti que ele já estava bem distraído com a minha aparente volta à realidade nossa de todos os dias, voltei a fazer perguntas.
Mas amor, acabaste por não me falar se o moço que só vê de um olho tem nome? Ele conduz?
É amor ele conduz sim, o primo dele é que fez o exame médico, aldrabou um pouquinho o resultado. Até mesmo lá no trabalho, ninguém sabe de certeza que ele não vê do olho direito.Todos fomos percebendo aos poucos...teve um dia que a Rosely pediu para ele grampar umas folhas, ela atirou o negócio e ele não teve nenhuma reação, ficou sangrando um monte e com o rosto roxo por uma semana...
E aí como ele justificou isso?
Falou que o café da lanchonete estava fraco de mais...Outra vez o António dos negócios imobiliários, ofereceu-lhe uma bala, enquanto ele olhava a porta, foi oferecendo oferendo oferecendo, cada vez mais perto, até que pisou o Aylton...
Sério?
Você não lembra? Eu te contei esse dia...
Ai amor, é muita coisa na cabeça...e então, como ele justificou isso?
Falou que estava muito atento à porta...
De que olho mesmo é que ele não vê?
Do direito...então ele fica encostado à porta, só olhando para fora, os carros que passam, as motos que zumbem, os clientes que vão chegando para o caixa eletrónico e os que entram na agencia...
Então e os que estão dentro do banco?
Acho que esses ele não vê...que pergunta estranha Filózinha...


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Filomena- parte III

Sabe Filózinha eu não sei porquê ele faz isso, tem vez que eu quero dormir, e não consigo, fico quieto só pensando porquê ele faz assim...uma hora sempre, mas uma hora Filó, de relógio digital, tá lembrada, daquele que muda o numero e pronto? Então ele faz assim, ou chega às 8.00 ou às 10.00. Ninguém nem vê ele dobrando a esquina, ou tomando café no bar. Ele aparece. Também não sei se ele mora longe ou perto, a Vanusa até que já perguntou para ele, mas ele esquiva a pergunta, olha para outro lado, fala de outra coisa, não responde não.
O Isaac, esse você sabe, outro mistério, até ja experimentou de ficar indo na lanchonete da esquina, sabe qual é, a que de quarta-feira não serve feijoada porque acha ruim para os vegetarianos, então, ele ficou lá desde 7.45 só esperando ver o Leandro aparecer, e o cara, o cara apareceu 9.59 do nada e cruzou a porta. Ainda levou maior bronca o Isaac, porque não saiu a fazer os recados na hora certa, você sabe que o Boris gosta que ele vá no banco logo às nove, porque não tem tanta fila. Esse Boris, vou-te falar, não sabe o que tá falando, todo o mundo sabe que correio é cheio demais quando começa o dia....
Foi falando cada vez mais estranho, sua voz ecoava na minha cabeça como dentro de uma embalagem de palmito de pupunha...o Zé trabalha num banco....porque é que eu não roubo o banco?Nunca ninguém me associaria ao crime, eu sou a costureira que cuida da casa, dos filhos, não tenho cadastro, não tomei nem multa, todo o mundo sabe que eu sou muito honesta, devolvo até carrete de fio quando a pessoa traz para eu usar e acabo não gastando tudo...Ninguém nunca nem pensaria que eu poderia fazer algo assim...será que eu preciso de ajuda? Acho que não, aí taria a genialidade do golpe, eu entro e saio todo o mundo me conhece, mas ninguém vai nem reparar que eu estou ali. Não posso falar nada para o Zé, ele não aprovaria nunca um roubo. E se aprovasse, daria bandeira, de certeza. Além do mais, há tanto tempo que eu não tenho um segredo...algo que não se diz para o marido, nem para a moça que faz a unha, nem às vezes, para mim mesma. Este é um segredo que eu não posso nem me contar muitas vezes, porque se eu me disser Filó vais roubar um banco, eu vou ficar pensando como seria essa Filó que rouba um banco? Soa até a filmes do faroeste, ou aquele do Batman...não parece muito real. Mas se eu não me disser nada, se eu ficar a Filó que sou sempre, e for costurando um plano como quem faz a dobra de uma saia, se eu for planejando como entrar e sair sem chamar à atenção, então pode dar certo. Uma coisa só daquela vez. Roubo o banco um dia e pronto. Como posso justificar o dinheiro para o Zé? Fico com ele só para mim, será que eu poderia deixar este homem? Ir embora com a Mari e o Amando? Será que eu sentiria a falta dele?Será que os meus filhos sentiriam a falta do pai? Será que o segurança me vê se eu entrar pela porta dos fundos? Terão câmara ali? Só tem um segurança?
Amor, e o moço que só vê com um olho, como é que ele se chama?

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Filomena- parte II

Então, ontem dia que dormi com os pés ao léu, foi um dia fora o comum, diria até que um pouco louco, se não acreditasse tanto como acredito na ideia absolutamente perfeita que eu tive...
Para vos contar esta ideia, a vocês interlocutores confiáveis, mais confiáveis que padre ou psicanalista (será que um psicanalista se veria obrigado a chamar a polícia e contar os meus planos? Não sei, mas certamente supervisaria...e os padres, os padres já todos sabemos que não são de confiança, ou a expressão rádio vaticano seria inexistente...)Então, vocês que ficaram capturados por usar meias ou não usar meias, hamlets da roupa interior, vocês precisam de saber algo mais sobre mim, para perceber o porque desta genialidade inesperada.
Eu sou a Filomena, casada com o José, mãe da Marília e do Amado. Costumamos começar por aí, certo? Quem temos, sobretudo se o que temos não aplica.
Vivemos na zona leste, um bairro não considerado nobre, contudo o nosso apartamento é bastante bom, noventa metros quadrados, zona de lazer em que a piscina, costuma funcionar pelo menos metade do ano. Temos um carro, chevrolet negro e não somos religiosos. Casámos cedo, eu e o José, acho que se pode dizer que não somos pessoas de encanar a perninha à rã.
Vivemos tranquilos, cheios de rotinas, levando os meninos à escola no horário, recolhendo os meninos da escola bem na hora de ponta, cozinhando lentilhas à terça feira e feijoada ao sábado. Tudo ordenado em nossas vidas.
Tudo excepto o país em que vivemos, que já será de vosso conhecimento, a necessidade profunda de arrumação geral que temos, aquilo que a minha tia Lucilda chamava de limpeza de primavera.
A tia Lucilda, agora que penso, também falava muito de meias. O marido tio Amâncio, espanholasso usava sempre meias na hora h, coisa que ela contava intrigada. Aparentemente, ele lera que ajuda a ter uma vida sexual mais activa, pular essas preocupações de etiqueta, ou o algodão numa extremidade, ajudava a que tudo fosse que nem seda, noutra? Fazer amor à inglesa, era como ele lhe chamava, quando se defendia publicamente das confidencias da  esposa. Suponho que nisso como em tudo, não há muitas regras...
Enfim, vamos à ideia.
Hoje como todas as manhãs, levo os meninos à escola em jejum, assim que acordo tomo o comprimidinho para o ferro, chupo um limão e corro para o omnibus.
Na volta preparo o pequeno-almoço para o Zé e para mim, e conversamos um pouco.
Ele toma café com leite, eu café puro. Em geral ele conta coisas lá no banco em que ele trabalha, e eu escuto, porque ninguém fala das linhas com que cose roupa alheia...Lá na sucursal do Zé, acontecem sempre as coisas mais bizarras.
O chefe que chega sempre ou uma hora mais cedo ou uma hora mais tarde, a companheira de balcão que pinta as unhas de vermelho bem garrido, e se veste como judia ortodoxa, o segurança que não vê de um olho, o motoboy que vai ter o sétimo filho, a senhora de idade que se nega a tirar a senha de prioritária...Tudo ele me conta ao pormenor, fascinado, e fascinada eu escuto. Não pelo que ele conta, mas por ele, gosto demais dessa narração que ele cria, dos jeitos com que conta, os olhares que descrevem tão bem o que ele sentiu...
Gosto muito do meu Zé, ainda que às vezes senão fosse por esta narração telenovelesca, eu não conseguisse nem me lembrar que ele existe...
Levantei-me para trazer o açúcar e ao sentar de volta pensei:
Que é que ele tá falando mesmo?
Decidi escutar o que ele diz, mais além de como ele diz, e de repente algo apareceu em mim...

terça-feira, 17 de maio de 2016

Filomena tem uma ideia- parte I

Os meus pés à hora de ir dormir: o termómetro do meu humor.

Quando era criança dormia com meias. Meias, soquetes, peúgas: nunca soube qual era a denominação apropriada para aquele bocadinho de algodão que, preferentemente com bonecos, forrava a extremidade menos importante do meu corpo. Importantes eram as mãos que desenhavam, apanhavam um colega que corria, as mãos que tapavam os olhos enquanto contávamos até dez. Os pés foram uma descoberta posterior, por acidente.
Um dia, a dona Alice, porteira de reputação intermédia, apareceu em casa às 21.30. Saber como estamos, como encontrámos a casa, como estão as meninas, bla bla bla. Presenciou assim, por casualidade, a nossa ida para a cama. Quando temos oito anos, achamos que todos os meninos e meninas vão dormir igual que nós: pijama do snoppy ou da galinha pintadinha, a marca da geração e do género varia mas fora isso: homogeneidade.
Contudo, dona Alice ficou embasbacada de espanto, de terror, de profunda indignação: dormíamos de meias (soquetes, peúgas). No mundo da dona Alice, note-se que o d de dona é em letra minúscula para melhor caracterizar a personagem, todo o mundo dorme sem meias, porque as meias, vejam bem, mesmo quando acabamos de tomar banho e as calçamos lavadinhas: são sujas.
Ponto final parágrafo, as meias são sujas. Também os soquetes e as peúgas.
Aquele evento mudou a minha percepção das extremidades, os pés eram assunto nacional, e as meias assunto racional, tiravam-se antes de dormir.
O inverno cobrava o seu preço, no verão fazia até sentido.
Um dia por acaso dei por mim a recordar esta história, e decidi que se foda a dona Alice e as suas teorias bizarras (relembrei o caso dos smurfs desaparecidos em uma das visitas de seus netinhos) e calcei meias, soquetes e peúgas de novo.
Para que vos estou então a falar de termómetros? Indignados vocês foram lentamente pensando se se dorme com ou sem meias, certo?
Hoje em dia eu durmo com meias, quase sempre, verão incluído.
Cada tanto, acontece de me deitar e perceber que não consigo manter as meias...uma incapacidade de me abstrair desse tecido sobre os dedos dos pés, os calcanhares, o incómodo do elástico sobre o tornozelo...as peúgas falam-me, criticam-me, chamam-me...ponho os pés de lado, para cima...eles rebeldes resistem e formigam, ou doem um pouco fazendo o dormir uma tarefa impossível.
Nesses dias, aprendi a aceita-lo, eu tiro as meias.
E nesse dormir de pés ao léu eu vejo uma rebeldia contra o quotidiano, uma liberação filosófica, uma espécie de felicidade.
Ontem eu tirei as meias.
Perguntam vocês porquê...
Algo aconteceu de facto, só que não vos posso contar hoje...tenho que pôr a roupa a lavar.
Já volto...

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O pinterest acaba de me sugerir um match com alguém. Entro a ver o que em comum temos, e fico deslumbrada com tudo o que a Mémé pineou. Efectivamente temos um gosto muito similar...Sou obrigada a perceber que o meu gosto não combina com a minha vida. Que o lugar onde vivo não combina com a casa que sonho habitar. Será que a Mémé sofre a mesma despersonalização?
Enquanto isso uma formiga atravessa rápida o teclado.
Desculpa formiga, aqui também não podes viver....

 O que aconteceu conosco gente?
Quando foi que deixámos de ver Pretty woman e sorrir felizes com esse desfecho?
 Quando foi que os aristogatos deixaram de ser, possíveis para nós? 
Quando foi que deixámos de acreditar que o amor é uma força que chega onde quer que seja, sem olhar a beleza, o dinheiro, o poder, o estrato social?
Quando foi?
Eu nego-me, nego-me a acreditar que tudo esta tingindo de dúvida. Para mim existem historias de amor, sim!!
E amores à antiga, claro! Porque não?
Amores como os das minhas avós, abraçando um casamento com um homem maior que elas, seguro dele mesmo, que lhes possa prover de segurança, entendimento, casa, filhos. Amores que são como novelos de lã que se enrolam a vida toda devagar, monocromáticos, seguros e ainda assim vibrantes, tácteis, capazes de construir suas camisolas, mantas, e impérios.
Amores de contos de fadas, amores proibidos, amores improváveis.
Amores que nascem de um olhar sobre o mamão-papaia de um senhor viúvo e entristecido e sua empregada. Ele descobrindo com ela o mundo da simplicidade, dos pequenos prazeres, e ela saberá que a torre Eiffel é como o amor deles: um feliz acaso.
Eu acredito em amores assim, aliás digo mais, amores assim, imprevisíveis e profundamente românticos são o sonho não só de jovenzinhas inocentes como de jovenzinhos.
 É o sonho que trazemos todos nós, rebelarnos contra estes tinders de hora marcada.
Com o Brasil como está, dividido, crispado, negativo, só a crença no amor sem fronteiras, um amor gratuito, generoso, puro o pode resgatar. 
Só quando acreditarmos no amor impossível, desinteressado, puro, crente a Deus: o amor que tudo pode conquistar, encontraremos as forças para acreditar num outro Brasil.
Marcela e Michel são a imagem viva desse amor de gata borralheira, que esses amores puros, desinteressados dão certo. Que se pode encontrar um homem inteligente, sólido, honrado e que se pode conseguir essa mulher que é bela, recatada e do lar.
E hoje um telhadista da periferia nos mostra como salvar o Brasil.
Marcela, Temer, não sintam mais vergonha desse amor, apostem na transparência único caminho possível para acabar com a corrupção, nos telhados que não sejam de vidro e mostrem ao brasil as três fotos de Marcela na intimidade!!
Assumo que cozinhando bolo de iogurte para o lanche da tarde, ou lavando os pés de Michel Miguel com água de rosas que ela própria espremeu pensando feliz nos dias vividos sonhando com esse amor que chega agora a governar a sua pátria amada…Lutem contra a corrupção hoje, mostrando que o vosso amor não é de mentirinha, que não é de interesse, mas um amor tão merecido como a sua presidência…

Mostra as fotos querido telhadista, hoje, está nas tuas mãos a construção de um novo Brasil.

quinta-feira, 12 de maio de 2016


A terra e o céu de Jacques Dorme.
                                                                              Andrei Makine
                                                                         CosacNaify

quinta feita de dúvidas

Como te despedes do que nunca conheceste?
Chove ou faz sol, e se chove faz calor, ou se chove faz mais frio?
Devo pensar que temos um novo presidente?
Chega a caixa branca e um papel, Ioke e lasa.

É, então...

terça-feira, 10 de maio de 2016

Mas não há dias que gostavas simplesmente de estar lá? Perguntara-me um dia uma amiga. Não soube responder, para mim não era uma questão de dias, já não...eram perguntas mais complexas, não por isso mais pertinentes, acerca do futuro, do destino, do que fazia sentido.
E assim foi, até o dia em que comendo chocolate e lendo um livro me descobri presa de uma textura. Um rosa pálido, aveludado, onde eu via aviões levantando voo, livros europa-américa desbotados, e um armário que sempre achara lindo subitamente clichê. Nesse veludo, eu via a escova de cabelo de prata, a minha avó frente ao espelho, silenciosa e orgulhosa, sem que isso tapasse como tinta, os cabelos brancos de sua tristeza.
E nesse veludo rosa pálido eu me vi pequena, curiosa, e cheia de interrogações, palpitando debaixo de uma franja castanha e espessa, que hoje, me apeteceria ter...
Hoje seria um desses dias.

sábado, 7 de maio de 2016

tragédia e milagre nos Andes

Tudo branco. Nada mais.
Podia ser bonito, se o olhar fosse rápido. Se olhasse um breve segundo e olhasse depois outra coisa, então ficaria a sensação de beleza.  A beleza às vezes é só a rapidez sobre a miséria. Quando não olhas de relance, quando o teu olhar é longo, demorado, quando o teu olhar procura algo mais que neve, aí… só aparece a miséria.
Neste branco estão os corpos de nossos companheiros, amigos, treinadores, assistentes, hospedeiras simpáticas, a voz de um piloto que aqui tem um corpo curto, acanhado, a sua voz era a de um gigante com asas… Neste branco estão também pais, mães, irmãs de muitos de nós. Uma coisa que nunca ninguém diz sobre o branco, é que ele é a cor da ausência..aqui estão eles: presentes na ausência. 
Tudo isso aconteceu há poucas semanas, no entanto dentro de mim, passaram-se anos. Nada faz o tempo andar mais devagar que ver a tua família, um por um, a cair. Há dias que percebemos que ninguém nos pode encontrar envoltos nesta mortalha, antes mesmo de ouvimos pela rádio como abandonaram as buscas. Ninguém nos espera. Todos os relógios que tictaqueavam a esperança, ficaram sem pilha. 
Algum dia as pessoas que encontrem os nossos esqueletos, perguntar-se-hão de que morreram. Uns da queda, e os outros? De fome, pensarão. Água temos em abundância, é só por um pouco de gelo na boca. Morreremos com certeza, há uma semana que o sabemos. 
Roberto e eu não conseguimos esperar pela morte. Prefiro levar o cálice à boca e tomá-lo de pé, lutando. Ir ao encontro dela. Não é só a fome, nem só o frio…É o branco que enlouquece, prefiro morrer fazendo uma loucura…
Quando caminhas há dias e só vês branco, entendes que o branco é a cor do que não está, mais que a ausência que é algo que fala de existir, o branco, é o nunca ter existido. Só consegues pensar nisso. O branco vai-te invadindo por dentro. O branco é silencioso, é lento, mas não é diminuto, não é escasso, não é irrisório, não é limitado. Uma estepe nevada é a medida do infinito.
Os nossos pés entrando e saindo devagar da neve, pouco a pouco perdendo a sensação do frio, A fome seguiu-nos, até nos encontrar. Nenhum raquítico coelho, nenhuma lebre insignificante, nenhuma humilde águia, só branco.
 O ar entrando breve, rarefeito, encolhendo os nossos pulmões…fazendo de jogadores de rugby, avózinhas enfezadas, cansadas.
Depois do segundo dia sinto que vi o vazio por dentro, vi tanto branco que as cores se apagaram dentro de mim, eu continuo a caminhar porque é tudo o que venho fazendo e não sei parar. O branco deixa-te como uma máquina, o mesmo gesto repetido, repetido, a impossibilidade de não responder. Três dias e continuamos longe do sopé.
Cada passo que damos exige toda a concentração, o pé que afunda, volta mais pesado, embebido em desespero que goteja. O corpo cada vez mais existe em câmara lenta, cada pensamento dura uma eternidade, cada movimento requere uma energia que não se renova. Se olharmos para trás, eles estão ali perto, sabemos agora que é mentira. O branco é mentiroso, engana-te da forma que quer. Olhando para a frente o enigma, nada menor, do tempo que falta, o tempo que conseguiremos ainda resistir. Quero morrer pelo menos no cimo daquela colina, dizer ao branco que lhe conheço ao menos algum miserável segredo…
Branco que brilha, que encandeia. Corta o olho como uma folha de papel, sem descanso, sem sossego, lamina feroz. Queima, nunca imaginei que o branco queima, a pele fica como um pergaminho perto do fogo, vai doendo e estalando até que caí, e depois fica rosadinha como um rabo de bebe, e depois arde como se fosse untada com ácido…mãos, pés, rosto. 
O estranho é que os pés em certo momento deixam de doer, as mãos deixam de se sentir, mas as pálpebras, as pálpebras são o umbigo da humanidade, são as ultimas em se calar, doem em mil tons, ardem em diferentes sabores, resistem até quando nós lhes pedimos que se fechem, que por favor deixem de ver todo esse branco…



quinta-feira, 5 de maio de 2016

Faço de leão. Ele sobe nas minhas costas. Vou de joelhos rosnando, arrastando uma pata e depois outra, vagarosa, pesada sacudindo a juba.
Anda filho vamos caçar uma presa.
Anda vamos caçar uma prenda!
Ele é mesmo o rei da selva...