quarta-feira, 18 de maio de 2016

Filomena- parte II

Então, ontem dia que dormi com os pés ao léu, foi um dia fora o comum, diria até que um pouco louco, se não acreditasse tanto como acredito na ideia absolutamente perfeita que eu tive...
Para vos contar esta ideia, a vocês interlocutores confiáveis, mais confiáveis que padre ou psicanalista (será que um psicanalista se veria obrigado a chamar a polícia e contar os meus planos? Não sei, mas certamente supervisaria...e os padres, os padres já todos sabemos que não são de confiança, ou a expressão rádio vaticano seria inexistente...)Então, vocês que ficaram capturados por usar meias ou não usar meias, hamlets da roupa interior, vocês precisam de saber algo mais sobre mim, para perceber o porque desta genialidade inesperada.
Eu sou a Filomena, casada com o José, mãe da Marília e do Amado. Costumamos começar por aí, certo? Quem temos, sobretudo se o que temos não aplica.
Vivemos na zona leste, um bairro não considerado nobre, contudo o nosso apartamento é bastante bom, noventa metros quadrados, zona de lazer em que a piscina, costuma funcionar pelo menos metade do ano. Temos um carro, chevrolet negro e não somos religiosos. Casámos cedo, eu e o José, acho que se pode dizer que não somos pessoas de encanar a perninha à rã.
Vivemos tranquilos, cheios de rotinas, levando os meninos à escola no horário, recolhendo os meninos da escola bem na hora de ponta, cozinhando lentilhas à terça feira e feijoada ao sábado. Tudo ordenado em nossas vidas.
Tudo excepto o país em que vivemos, que já será de vosso conhecimento, a necessidade profunda de arrumação geral que temos, aquilo que a minha tia Lucilda chamava de limpeza de primavera.
A tia Lucilda, agora que penso, também falava muito de meias. O marido tio Amâncio, espanholasso usava sempre meias na hora h, coisa que ela contava intrigada. Aparentemente, ele lera que ajuda a ter uma vida sexual mais activa, pular essas preocupações de etiqueta, ou o algodão numa extremidade, ajudava a que tudo fosse que nem seda, noutra? Fazer amor à inglesa, era como ele lhe chamava, quando se defendia publicamente das confidencias da  esposa. Suponho que nisso como em tudo, não há muitas regras...
Enfim, vamos à ideia.
Hoje como todas as manhãs, levo os meninos à escola em jejum, assim que acordo tomo o comprimidinho para o ferro, chupo um limão e corro para o omnibus.
Na volta preparo o pequeno-almoço para o Zé e para mim, e conversamos um pouco.
Ele toma café com leite, eu café puro. Em geral ele conta coisas lá no banco em que ele trabalha, e eu escuto, porque ninguém fala das linhas com que cose roupa alheia...Lá na sucursal do Zé, acontecem sempre as coisas mais bizarras.
O chefe que chega sempre ou uma hora mais cedo ou uma hora mais tarde, a companheira de balcão que pinta as unhas de vermelho bem garrido, e se veste como judia ortodoxa, o segurança que não vê de um olho, o motoboy que vai ter o sétimo filho, a senhora de idade que se nega a tirar a senha de prioritária...Tudo ele me conta ao pormenor, fascinado, e fascinada eu escuto. Não pelo que ele conta, mas por ele, gosto demais dessa narração que ele cria, dos jeitos com que conta, os olhares que descrevem tão bem o que ele sentiu...
Gosto muito do meu Zé, ainda que às vezes senão fosse por esta narração telenovelesca, eu não conseguisse nem me lembrar que ele existe...
Levantei-me para trazer o açúcar e ao sentar de volta pensei:
Que é que ele tá falando mesmo?
Decidi escutar o que ele diz, mais além de como ele diz, e de repente algo apareceu em mim...

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