quinta-feira, 26 de maio de 2016

não tentar em casa

O ruído do trem que chega, o trem que vai. Não sei quem chega, não sei quem parte.
Colocaram a fita amarela para os cegos.
 Terão medo que algum cego caía sem querer na via?Ali à frente a clássica mulher que gosta de ter vantagem sobre todos. Na frente do traço amarelo. Fora de jogo se fosse bola.
 Será que ninguém pensa em empurrá-la? Que aconteceria se eu fosse lá e desse um empurrão?
Ela teria capacidade de resposta? Alguém saltaria para a salvar como o anjo de "puerta del angel". Será que se ela se deitar nas vias o trem passa por cima e ela sobrevive, como nos filmes? Será que eu iria preso? Gide dizia que era o assassinato perfeito. Nenhuma ligação entre a vítima e o assassino. Aqui o problema são as testemunhas...Teria tempo de fugir? Quero fugir? Qual seria a pena? Dez anos de prisão? Será que prisão é tão insuportável mesmo? Isto não é pior?
Ai a cabra da mulher não deixa passar a velha da bengala.
Apressada, querendo tirar vantagem e com um casaco amarelo que fere a vista como estes guinchar de rodas enferrujadas fere o ouvido...ou é o travão? Infernal, ruído infernal do metro. De toda esta gente mastigando seus donuts com cafe com leite, suas sanduíches de queijo manchego, vão todos para la madre que los parió.
E se empurro a mulher, vou lá, encosto a mão devagar no casaco brilhante dela, e empurro. Vejo como ela cai, não sem primeiro resistir, esbracejar num gesto de urgência, emitir o som de um susto, de uma zanga e ao mesmo tempo um pedido de clemência, de perdão.
O sapato é barato, vai quebrar, vai resistir à passagem do comboio, vaso ruim não quebra.
O que tenho a perder? O que não está perdido ainda?
Será que ela tem algo a perder? Isso não importa, será que alguém a perderia?
 Casaquinho amarelo prepotente, tirando vantagem, sapatinho de verniz barato...não deve ter.
E a mãe, mãe não se recupera de perder filho.
Desculpe.
Que é?
Sua mãe vive?
Que pergunta é essa?
Seu pai, vive?
Não...
Vi o seu rosto perplexo, marcas de base alaranjada, olho verde bonito ainda, lentes de contacto secas, um trejeito de irritação no lábio superior, cheiro a canela com baunilha, o cabelo precisando de ser pintado. A raiz espreitando, única verdade no cacto em questão.
Coloquei a mão no casaco amarelo, como uma carícia no ombro, deslizei a mão do ombro para o peito, olhei no olho dela.
Senti nas minhas mãos um coração acelerar-se, não sei se surpreso ou assustado.
Uma calma imensa se abateu sobre mim.
Empurrei-a rápido, preciso.
Caiu de costas, e ficou de sapato perdido me olhando de volta.
Ninguém se mexeu na plataforma.
Agora eles tem câmaras, podem ver que fui eu, que se foda.
Veio o trem rápido tentando travar.
Respingou um pouco de sangue na minha camisa de flanela.
Abriram-se as portas, automáticas em sua frieza.
Passe você senhora, disse à tal velhinha.

Exercício escrita criativa

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