sábado, 7 de maio de 2016

tragédia e milagre nos Andes

Tudo branco. Nada mais.
Podia ser bonito, se o olhar fosse rápido. Se olhasse um breve segundo e olhasse depois outra coisa, então ficaria a sensação de beleza.  A beleza às vezes é só a rapidez sobre a miséria. Quando não olhas de relance, quando o teu olhar é longo, demorado, quando o teu olhar procura algo mais que neve, aí… só aparece a miséria.
Neste branco estão os corpos de nossos companheiros, amigos, treinadores, assistentes, hospedeiras simpáticas, a voz de um piloto que aqui tem um corpo curto, acanhado, a sua voz era a de um gigante com asas… Neste branco estão também pais, mães, irmãs de muitos de nós. Uma coisa que nunca ninguém diz sobre o branco, é que ele é a cor da ausência..aqui estão eles: presentes na ausência. 
Tudo isso aconteceu há poucas semanas, no entanto dentro de mim, passaram-se anos. Nada faz o tempo andar mais devagar que ver a tua família, um por um, a cair. Há dias que percebemos que ninguém nos pode encontrar envoltos nesta mortalha, antes mesmo de ouvimos pela rádio como abandonaram as buscas. Ninguém nos espera. Todos os relógios que tictaqueavam a esperança, ficaram sem pilha. 
Algum dia as pessoas que encontrem os nossos esqueletos, perguntar-se-hão de que morreram. Uns da queda, e os outros? De fome, pensarão. Água temos em abundância, é só por um pouco de gelo na boca. Morreremos com certeza, há uma semana que o sabemos. 
Roberto e eu não conseguimos esperar pela morte. Prefiro levar o cálice à boca e tomá-lo de pé, lutando. Ir ao encontro dela. Não é só a fome, nem só o frio…É o branco que enlouquece, prefiro morrer fazendo uma loucura…
Quando caminhas há dias e só vês branco, entendes que o branco é a cor do que não está, mais que a ausência que é algo que fala de existir, o branco, é o nunca ter existido. Só consegues pensar nisso. O branco vai-te invadindo por dentro. O branco é silencioso, é lento, mas não é diminuto, não é escasso, não é irrisório, não é limitado. Uma estepe nevada é a medida do infinito.
Os nossos pés entrando e saindo devagar da neve, pouco a pouco perdendo a sensação do frio, A fome seguiu-nos, até nos encontrar. Nenhum raquítico coelho, nenhuma lebre insignificante, nenhuma humilde águia, só branco.
 O ar entrando breve, rarefeito, encolhendo os nossos pulmões…fazendo de jogadores de rugby, avózinhas enfezadas, cansadas.
Depois do segundo dia sinto que vi o vazio por dentro, vi tanto branco que as cores se apagaram dentro de mim, eu continuo a caminhar porque é tudo o que venho fazendo e não sei parar. O branco deixa-te como uma máquina, o mesmo gesto repetido, repetido, a impossibilidade de não responder. Três dias e continuamos longe do sopé.
Cada passo que damos exige toda a concentração, o pé que afunda, volta mais pesado, embebido em desespero que goteja. O corpo cada vez mais existe em câmara lenta, cada pensamento dura uma eternidade, cada movimento requere uma energia que não se renova. Se olharmos para trás, eles estão ali perto, sabemos agora que é mentira. O branco é mentiroso, engana-te da forma que quer. Olhando para a frente o enigma, nada menor, do tempo que falta, o tempo que conseguiremos ainda resistir. Quero morrer pelo menos no cimo daquela colina, dizer ao branco que lhe conheço ao menos algum miserável segredo…
Branco que brilha, que encandeia. Corta o olho como uma folha de papel, sem descanso, sem sossego, lamina feroz. Queima, nunca imaginei que o branco queima, a pele fica como um pergaminho perto do fogo, vai doendo e estalando até que caí, e depois fica rosadinha como um rabo de bebe, e depois arde como se fosse untada com ácido…mãos, pés, rosto. 
O estranho é que os pés em certo momento deixam de doer, as mãos deixam de se sentir, mas as pálpebras, as pálpebras são o umbigo da humanidade, são as ultimas em se calar, doem em mil tons, ardem em diferentes sabores, resistem até quando nós lhes pedimos que se fechem, que por favor deixem de ver todo esse branco…



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