sexta-feira, 29 de abril de 2016

Do longo namoro que tenho com a outra Olga, há um momento que se destaca.
Ouvira falar das máquinas de fotos lomo, dias depois, ainda fascinada com tal descoberta saí na estação do Chiado. Esperava-me ali, porque só poderia ser para mim, uma exposição de fotografias lomo.
Sobre o branco do azulejo, que contrasta com o cinzento que não sabemos bem se existe ou não, cores se multiplicavam, movimentos se despiam.
Esta Olga que responde ao meu nome, ficou ali parada, indo para a frente e para trás, ligeiramente nervosa que alguém realmente pudesse vir e dizer-lhe: é para ti Olga, tu sabes, não sabes? Ou pior, que algum adolescente mais vivaço, ou alguma velha bordeando a psicose bruxesca, se chegasse bem perto de mim e dissesse: estás a achar que estão aqui, para ti? e soltasse uma gargalha com jeitos de tornado, e expusesse naquele branco todo as vísceras das minhas ilusões.
Tal medo tomou conta da Olga que era.
Sai rápida e nervosa, procurando o anonimato da luz do dia.
Dentro de mim eu sabia: era para mim, era por mim, era um sinal para que eu fosse a outra Olga.
A outra Olga que eu namoro, como sapatos de verniz em uma vitrina. Para ser ela, não há saldos, não há promoções, não há queima de estoque...diante tal valor, imediatamente me invadiu um nervosismo que desembocou em croiassant de chocolate...coisa que a outra Olga não faria.
Esse dia eu não esqueço, foi uma assustadora janela para a possibilidade de eu ser outra.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Tic tac carambola,
parafusos sendo mordidos por dentes brancos.

Tic tac carambola,
maçã que cai da bolsa da compra, rola pela rua, é esmagada por um carro.

Tic tac carambola,
o gosto da tangerina, antes de estar peluda, antes de estar azeda, quando tem gosto do verão que passa.

Tic tac carambola,
os ponteiros dos segundos todos que passam, enquanto a carambola ticmartelac a minha cabeça.

quarta-feira, 27 de abril de 2016


Cá e lá.
                                                        Viagens escritas a lápis.

João Guilhermino

João Guilhermino Fernandes. Guilhermino não é sobrenome, é segundo nome. 
Até hoje acreditei que essa nomeação realmente fazia de mim alguém extraordinário. Não acredito que me possam julgar por isso, é assim, aliás era assim, sempre foi assim.
Guilhermino era a marca do destino sobre mim. Não era um sinal, uma mancha no cabelo, nem um olho de cada cor que me distinguia dos demais. Era o nome. O segundo nome, ideal para apanhar o público desprevenido. Como te chamas? Joãoooo…GuILHERMino. O interlocutor ficava capturado. Se o interlocutor fosse mulher, mulher interessante, eu pronunciava ainda mais devagar, pondo cara de timidez e vergonha. As mulheres adoram homens singulares que desejam ser a-singulares. Se fosse um exame ou uma entrevista de trabalho pronunciava rápido e com força, para mostrar que me via a mim próprio como um ser completo, complexo, forte.
Joãooo…guILHERMino tinha além do mais um não sei quê de BONd…JAMes bond. 
Nunca me preocupei portanto, demasiado, com ser extraordinário, já me sentia extraordinário.
O curso escolhi-o por practicidade, a profissão também: administrativo. Aqui no Brasil ser administrativo é um pouco como ser JAMes BONd. Dá ideia que se administra qualquer coisa, não há problema que fique sem solução.
Ultimamente, no entanto tenho-me encontrado com um problema sem solução. Tento “dormir sobre o assunto”, mas é o assunto que dorme sobre mim. Qualquer assunto. 
Hoje, como nos últimos meses levantei-me assim, meio zombie,meio João..GUILHERMINO .
Tomei o café que a minha mulher me deixou preparado, deixei o silêncio da casa me acompanhar enquanto engolia as torradas, tomei o duche de água quente que me aproxima, ultimamente, do desmaio, vesti-me e saí.
Saí e voltei a entrar, esqueci-me de trocar a pantufa pelos sapatos. Tinha esquecido a chave do carro também…João amor, não devias conduzir se não dormes o suficiente…ouvi-a na minha cabeça. Omnibûs e metro implicam mais uma hora de deslocação, prefiro o acidente…
No trabalho, administrei o que pude administrar…mails, telefonemas, conversas informais e conversas formais, uma pequena paragem no banheiro para fechar os olhos.
João Guilhermino dormindo no banheiro? Imagino os meus companheiros comentando…no entanto, só fecho os olhos mesmo, não consigo dormir aqui, nem lá, nem de manhã, nem de tarde, nem à noite, nem sábado, nem domingo, nem feriado.
João Guilhermino é extraordinária a sua insónia!! Imagino o que me diria o médico, caso o consultasse.
Retomo administratividades até às seis. Esgotado peço à minha mulher que vá ela, de novo, “extraordinariamente” buscar os meninos à escola. Ligo à minha mãe e peço que ela vá “extraordinariamente” fazer a compra por mim, lá ao minimercado.
Arrasto-me até à garagem, chave na ignição e aquela dor no corpo…o cansaço latejando.
Arranco para casa, trânsito parado, semáforo atrás de semáforo.
Oi!! Você aí, quer que lhe cante uma canção?
A velha desdentada de sempre, suja, suja, suja até a sujeira se transformar na sua pele, desdentada como um clichê de sem abrigo…e ela começa a cantar, apesar de eu abanar a cabeça dizendo que não, que por favor não…
Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última/ E cada filho seu como se fosse o único…*
Senti de repente uma faca no meu estômago, uma faca rasgando-me, devagar, milimétrica. As palavras de Chico, ouvidas mil vezes, me consumiam agora num fervor de bisturi, lentas ácidas, corroendo-me  pele, músculo, carne e parando no osso em um crepitar que prometia cortar mais fundo, cortar ainda mais, atravessar- me como um diamante delapidando o ar. Torci-me, um pouco, tentando acalmar o corte, mas o corte abriu-se mais ainda, o diamante folha de papel começou a cortar braço, peito, ombro, mão, pé, estofo, metal, e o mundo. Doeram os retalhos de mim como uma nódoa negra examinada por uma mãe zelosa, doí-te aqui?ou aqui?
Estremeci de pânico, porque me cortavam assim aquelas palavras, morreu na contramão, terminou de me tocar como parede de cimento toca a um condutor que sai voando do carro que contra ela se lançou.
Parou tudo, por fim. Começaram as buzinas atrás, e a velha louca gritou, Mexe essa geringonça homem!
Tinha uma só vida, aquela. Até o homem da construção tinha pelo menos três. 
Aquela em que eu não dormia, não sonhava, não descansava. Deitado do lado daquela mulher que eu já não reconhecia, correndo para manter aquele filho que só chorava e embirrava com tudo, tinha aquele trabalho em que administrava coisas que não me interessavam e não eram minhas…aquela casa igual a todas do quarteirão, aquele carro sem autocolante para evitar o sequestro, aquela roupa uniforme…
Só tinha aquela vida, que não era extraordinária, não tinha James Bond, nem nada que escapasse ao fluxo constante para o fim.
Parei na bomba de gasolina e desci para comprar uma coca-cola, que me trouxesse um pouco de ar.
Já lha trago fresca, senhor, qual é o seu nome?
João.
Só João?
João basta.



* Construção de Chico Buarque
** Texto produzido como tarefa para a oficina de escrita criativa

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Olho no olho





25 Abril

Café, hum…como cheira bem, melhor sem leite para não dar puns…manteiguinhaaaa? Não, hoje queijo de minas frescal, que disto não há lá em Portugal, que poeta que tu és Mariano, Camões do pequeno-almoço…pão fresco, será que ela comprou?Aqui está…Emília, hoje compras mais frescal?
Sim Mariano se Deus quiser.
Deixa-me rir mulher, sempre com Deus no bolso, “Deus é a nossa mulher-a-dias”**!
Bolso, carteira,cartão da escola, cartão azul, caneta, caderno. Ahhhh 5b hoje vocês vão levar uma sacudidela à Mariano!! O tuga sem dedo a falar mal da religião no primeiro dia de aulas, do colégio católico, só eu…
Até logo Emília, abraços à narizinho e ao visconde. 
O carro? Ah ali. Vamos lá ver que põe nesta pilharanca de rádio…pufff sertanejo nem Mooooorrrtoo.
Como será agora a fábrica? Mariano, piolho, se queres continuar a ler os teus livros tens que ir fazer umas horas à fábrica. Ela triste a tentar dizer-me coisas difíceis com ligeireza…porque será que ela usava sempre aquele cabelo preso, aquele avental azul…que será do avental azul? Ela deve-o ter usado até ao final…A Júlia deve a ter vestido bem, lá era costume voltar a vestir o vestido de noiva, não era?…será que a Julia o levou no casamento dela? Ai mãe…Tenho que lhes dar lanche, pão e queijo, café. Nem todos os empregados levariam com a mesma descontracção que eu um acidente destes, lá começa a doer o dedo…Porcaria de rádio, deixa ver se anda aí a cassete do Zeca?Zequinha, aqui está… Nunca entenderei como alguém esclarecido, culto, caramba o meu irmão lia, lia muito, ouvia o Zeca, o Sérgio, tinha o plano de fuga…caramba tinha tudo combinado, o passaporte, o horário, e sai-se com essa de fico aqui e seja o que Deus quiser. No mesmo lugar da cozinha, olha, nunca pensei nisso antes, parece que o cheiro…aquele cheiro a floresta que o Pedro tinha sempre, a camisa de quadrados vermelha, flanela, lavar e andar dizia a minha mãe, e ele sempre com aquilo vestido. Já passaram muitos anos, Mariano…vais chegar à escola com cara de choro? Ele ia ser de nós o mais livre, em Paris ou assim. Eu estava a salvo mais uns anos…só me podiam chamar para a tropa lá para 69. E em 69 já estava tudo diferente, Abril de 69, que pacóvios que somos, um ano e um mês depois dos franciús começarem lá com a algaraviada. O Pedro podia ter estado lá. Mas não esteve, e 69, já não tinha dedo, nem Pedro, nem deus. Já tinha vindo para este país fazer piretes*** aquela escumalha toda. Nada de macaquinhos no sotão. As besteiras que se fazem por crendices…
Boa tarde turma, sou o Mariano Gonçalves e vou-vos dar português este ano. Copiem isto por favor: “ A religião! A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar comum a todos os brutos, o terror.” É do Eça.
Professô, sua mulher ligou, quer que você passe a comprar frescal!
Oh meninos tão de que se riem?!? Diga-lhe que sim!
Esta mercearia é mesmo fim do mundo…Marília, o frescal?
Chave, carteira, frescal que disto não há em Portugal…ora as luzes da camioneta…vamos lá.
Será que ela fez empadão? Hoje é dia de empadão.
Olha-me isto, outra vez deixaram aqui a galinha com a cachaça?! Estes macumbeiros são do melhor, eu tiro, eles põe! Quantas vão?…Quatro ou quê esta semana. Freio de mão. Deixa lá ir buscar mais uma, vou levar para o pessoal da fábrica tomar quando voltarmos. Este pessoal não se convence que é preciso ser muito estúpido para achar que cachaça à beira da estrada serve para mais alguma coisa que para eu levar para casa…Ai esta galinha é a de ontem, reciclam pelo menos. Oh palhaço, baixe as luzes, estou deste lado, mas estou…
E de repente Pedro, eu vi na garrafa iluminada por um segundo… uma mão sem dedo, um velho de nariz achatado, olhos apequenados, sem cabelo, eu vi um velho fracassado, vi que perdi o pai, a mãe, o tio, a ti, a Portugal e à vida que era para ser minha, vi que agora deixarei esta que foi minha para ir para lá tomar conta da fábrica do tio, a mesma que me roubara o dedo..Eu vi Pedro que passei a vida toda a pensar que fazia piretes ao destino, com o dedo que o destino roubara…e sou um velho que bebe cachaça roubada à fé alheia, que se ri do se deus quiser de sua mulher, dos medos de lobisomem de seus netos…a vida fez-me piretes a mim, a ti, a todos…vocês pelo menos não estavam tão sozinhos, tinham o padre pio, o Jesus e o curupira…
Deixei lá a garrafa Pedro, foi-se-me a vontade de rir..Sou um velho a falar com um fantasma, olha Pedro, vou fazer de ti o meu santinho particular…

*Zeca Afonso
** Adília Lopes 

***piretes (gesto de mandar alguém tomar no c.)
 Desenvolvido como tarefa para a oficina de escrita criativa da Noemi Jaffe.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Certa vez tinha entrado numa taberna. Numa verdadeira taberna. Tabernas que inspiram cineastas que as olham desde o umbral da porta.
Na verdadeira taberna, aquela em que ele entrara, só serviam bebida.
Bagaço, wisky de produção enigmática e cerveja. Sagres ou Super-bock.
Chegaram os "de leste" e havia uma outra pilsen que ele não conhecia.
O convite que a pilsen estendia, era retirado com o olhar assim que algum loiro de rosto quadrado cruzava o tal umbral da porta.
O afamado umbral tinha em seguida a clássica cortina de fitinhas, destinada a manter longe cineastas, esposas, membros e fãs do clérigo.
Cruzando o arco-irís o que se encontravam era clichés de homens alentejanos, baixos, entroncados, barrigas pontiagudas e manchas de rosácea escondidas em boinas de xadrez de flanela.
Comida não tinham. Nem azeitona. Nem matutano.
Taberna não é para comer, é para beber.
Cerveja ou bagaço.
E fumar.
Fumar mas não marlboro que isso é para esplanada de café praça do Giraldo.
Fumar é fumar português suave, azul, vermelho ou amarelo.
Ele fumava azul, o mais suave na sua opinião. Pedira então bagaço para reposicionar-se como macho.
Não era bom ter cara de bébé numa taberna, e ele tinha.
Nem mesmo quando ali, naquele descida perdida da Serpa Pinto, em que se sabia, que ele, o menino da Eulália, tinha sido preso por tentativa de violação a uma rapariguinha do liceu.
O mesmo liceu, que ficava na esquina da taberna.
O mesmo liceu, cujas paredes caiadas oferecia um piscar de olhos encadeados a quem tentasse espreitar para dentro da taberna,cinematográficamente, a qualquer hora do dia.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Ele era como o português da piada.
Sentando-se uma vez num lugar do autocarro, encontrava-se impedido de mudar para outro lugar: trocar com quem não era a sua dúvida, ainda que fosse parte da sua questão.
 Ele era como o português é, mesmo, mas o brasileiro não sabe: Comprometido com as suas escolhas a extremos grotescos. Escolhi agora aguento-me, poderia ser a enunciação.
Ele era infeliz, já sabem isso, desde que começaram a ler...claro. Um leitor distraído já teria notado a quilómetros, um leitor como tu, caro leitor, descobriu já uma peculiaridade freudiana neste português, que não era lusitano, e sim brasileiro.
O que significa comprometer-se até às últimas consequências? Ser do corinthians porque um dia, numa festa a mãe o declarou antipalmeirense, viver no mesmo apartamento porque se angustia de dar as más notícias à milenária caseira, comprar na mesma frutaria, a mesma banana nanica, para não ter que dizer ao sr. Carlos que se enganou, ele gosta mesmo é da prata...então não é questão de compromisso é questão de cobardia, dizem vocês.
 Pode ser, aparece pela primeira vez em nosso caderno essa possibilidade. Teremos que investigar. Ainda assim, há exemplos que sustentam a nossa tese, casou com a primeira namorada, trabalha ainda no seu primeiro emprego, compra ainda o café da mesma marca que comprou no dia em que saiu da agência com seu primeiro cheque.
Cobra, ainda, em cheque, e compra café, ainda, assim que recebe o salário...
Ah então é compromisso mesmo, dirão vocês despistados por estes novos dados.
Fica ainda no ar a questão da troca, deixaremos um pouco de mistério por momentos, isso geralmente angustia muito o nosso português de piada.

sábado, 16 de abril de 2016

Ele assistia a tudo impassível. Havia algo de profundamente poético no silêncio. O mundo em movimento, tremendo, chorando, sacudindo-se em seu fogo mais profundo; ou na calma, o sol que desponta o sol que se desmonta. Assistir à vida como quem assiste televisão, não perdão, televisão não...como quem vem um bom filme, num velho e cómodo cinema. Sempre um novo filme, sempre sem pagar entrada. Há uma espécie de provocação nisso, um pequeno esgar de sorriso irónico, um profundo desdém.
Que impeachment nem meio peach, ele não sabe, ele assiste. Não torce, não grita, não se posiciona.
Um pouco previsível todo este filme, não por isso menos entretido, nem por isso mais emocionante.
A poesia no entanto, ainda está por encontrar...

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Chegando a casa, nada conforta mais que um bom banho...embalagens de shampoo já fossilizadas, que reconhecemos com um rápido olhar. As toalhas com o cheiro do amaciador que escolhemos, uma e outra vez. Há sempre algo que falta e algo que sobra: as contas que se apilharam à entrada e que recordam a Mafaldinha dizendo ao pai que enviaram muitas contas ao seu antigo eu, e falta água, coca-cola, cerveja ou pirulito.
Voltar a casa é assim, entre a nostalgia e a alegria, o dia a dia.

domingo, 3 de abril de 2016

"Reo-reo."

Ele espera através de um gesto explicar todo um universo.

Eu não sabia que sabia o que é um reco-reco.

Ele não fala muito bem, ainda, esqueci-me de referir.

"Reco, reco mamãe!"

E lá de um canto escondido, de uma memória que não parecia nem me pertencer, oiço-me dizer:
Claro, da capoeira, o reco reco.

Ele sorri aliviado que a sua intérprete no mundo não lhe tenha falhado.

Eu sorrio feliz porque sou sua intérprete.