quarta-feira, 27 de abril de 2016

João Guilhermino

João Guilhermino Fernandes. Guilhermino não é sobrenome, é segundo nome. 
Até hoje acreditei que essa nomeação realmente fazia de mim alguém extraordinário. Não acredito que me possam julgar por isso, é assim, aliás era assim, sempre foi assim.
Guilhermino era a marca do destino sobre mim. Não era um sinal, uma mancha no cabelo, nem um olho de cada cor que me distinguia dos demais. Era o nome. O segundo nome, ideal para apanhar o público desprevenido. Como te chamas? Joãoooo…GuILHERMino. O interlocutor ficava capturado. Se o interlocutor fosse mulher, mulher interessante, eu pronunciava ainda mais devagar, pondo cara de timidez e vergonha. As mulheres adoram homens singulares que desejam ser a-singulares. Se fosse um exame ou uma entrevista de trabalho pronunciava rápido e com força, para mostrar que me via a mim próprio como um ser completo, complexo, forte.
Joãooo…guILHERMino tinha além do mais um não sei quê de BONd…JAMes bond. 
Nunca me preocupei portanto, demasiado, com ser extraordinário, já me sentia extraordinário.
O curso escolhi-o por practicidade, a profissão também: administrativo. Aqui no Brasil ser administrativo é um pouco como ser JAMes BONd. Dá ideia que se administra qualquer coisa, não há problema que fique sem solução.
Ultimamente, no entanto tenho-me encontrado com um problema sem solução. Tento “dormir sobre o assunto”, mas é o assunto que dorme sobre mim. Qualquer assunto. 
Hoje, como nos últimos meses levantei-me assim, meio zombie,meio João..GUILHERMINO .
Tomei o café que a minha mulher me deixou preparado, deixei o silêncio da casa me acompanhar enquanto engolia as torradas, tomei o duche de água quente que me aproxima, ultimamente, do desmaio, vesti-me e saí.
Saí e voltei a entrar, esqueci-me de trocar a pantufa pelos sapatos. Tinha esquecido a chave do carro também…João amor, não devias conduzir se não dormes o suficiente…ouvi-a na minha cabeça. Omnibûs e metro implicam mais uma hora de deslocação, prefiro o acidente…
No trabalho, administrei o que pude administrar…mails, telefonemas, conversas informais e conversas formais, uma pequena paragem no banheiro para fechar os olhos.
João Guilhermino dormindo no banheiro? Imagino os meus companheiros comentando…no entanto, só fecho os olhos mesmo, não consigo dormir aqui, nem lá, nem de manhã, nem de tarde, nem à noite, nem sábado, nem domingo, nem feriado.
João Guilhermino é extraordinária a sua insónia!! Imagino o que me diria o médico, caso o consultasse.
Retomo administratividades até às seis. Esgotado peço à minha mulher que vá ela, de novo, “extraordinariamente” buscar os meninos à escola. Ligo à minha mãe e peço que ela vá “extraordinariamente” fazer a compra por mim, lá ao minimercado.
Arrasto-me até à garagem, chave na ignição e aquela dor no corpo…o cansaço latejando.
Arranco para casa, trânsito parado, semáforo atrás de semáforo.
Oi!! Você aí, quer que lhe cante uma canção?
A velha desdentada de sempre, suja, suja, suja até a sujeira se transformar na sua pele, desdentada como um clichê de sem abrigo…e ela começa a cantar, apesar de eu abanar a cabeça dizendo que não, que por favor não…
Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última/ E cada filho seu como se fosse o único…*
Senti de repente uma faca no meu estômago, uma faca rasgando-me, devagar, milimétrica. As palavras de Chico, ouvidas mil vezes, me consumiam agora num fervor de bisturi, lentas ácidas, corroendo-me  pele, músculo, carne e parando no osso em um crepitar que prometia cortar mais fundo, cortar ainda mais, atravessar- me como um diamante delapidando o ar. Torci-me, um pouco, tentando acalmar o corte, mas o corte abriu-se mais ainda, o diamante folha de papel começou a cortar braço, peito, ombro, mão, pé, estofo, metal, e o mundo. Doeram os retalhos de mim como uma nódoa negra examinada por uma mãe zelosa, doí-te aqui?ou aqui?
Estremeci de pânico, porque me cortavam assim aquelas palavras, morreu na contramão, terminou de me tocar como parede de cimento toca a um condutor que sai voando do carro que contra ela se lançou.
Parou tudo, por fim. Começaram as buzinas atrás, e a velha louca gritou, Mexe essa geringonça homem!
Tinha uma só vida, aquela. Até o homem da construção tinha pelo menos três. 
Aquela em que eu não dormia, não sonhava, não descansava. Deitado do lado daquela mulher que eu já não reconhecia, correndo para manter aquele filho que só chorava e embirrava com tudo, tinha aquele trabalho em que administrava coisas que não me interessavam e não eram minhas…aquela casa igual a todas do quarteirão, aquele carro sem autocolante para evitar o sequestro, aquela roupa uniforme…
Só tinha aquela vida, que não era extraordinária, não tinha James Bond, nem nada que escapasse ao fluxo constante para o fim.
Parei na bomba de gasolina e desci para comprar uma coca-cola, que me trouxesse um pouco de ar.
Já lha trago fresca, senhor, qual é o seu nome?
João.
Só João?
João basta.



* Construção de Chico Buarque
** Texto produzido como tarefa para a oficina de escrita criativa

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