segunda-feira, 25 de abril de 2016

25 Abril

Café, hum…como cheira bem, melhor sem leite para não dar puns…manteiguinhaaaa? Não, hoje queijo de minas frescal, que disto não há lá em Portugal, que poeta que tu és Mariano, Camões do pequeno-almoço…pão fresco, será que ela comprou?Aqui está…Emília, hoje compras mais frescal?
Sim Mariano se Deus quiser.
Deixa-me rir mulher, sempre com Deus no bolso, “Deus é a nossa mulher-a-dias”**!
Bolso, carteira,cartão da escola, cartão azul, caneta, caderno. Ahhhh 5b hoje vocês vão levar uma sacudidela à Mariano!! O tuga sem dedo a falar mal da religião no primeiro dia de aulas, do colégio católico, só eu…
Até logo Emília, abraços à narizinho e ao visconde. 
O carro? Ah ali. Vamos lá ver que põe nesta pilharanca de rádio…pufff sertanejo nem Mooooorrrtoo.
Como será agora a fábrica? Mariano, piolho, se queres continuar a ler os teus livros tens que ir fazer umas horas à fábrica. Ela triste a tentar dizer-me coisas difíceis com ligeireza…porque será que ela usava sempre aquele cabelo preso, aquele avental azul…que será do avental azul? Ela deve-o ter usado até ao final…A Júlia deve a ter vestido bem, lá era costume voltar a vestir o vestido de noiva, não era?…será que a Julia o levou no casamento dela? Ai mãe…Tenho que lhes dar lanche, pão e queijo, café. Nem todos os empregados levariam com a mesma descontracção que eu um acidente destes, lá começa a doer o dedo…Porcaria de rádio, deixa ver se anda aí a cassete do Zeca?Zequinha, aqui está… Nunca entenderei como alguém esclarecido, culto, caramba o meu irmão lia, lia muito, ouvia o Zeca, o Sérgio, tinha o plano de fuga…caramba tinha tudo combinado, o passaporte, o horário, e sai-se com essa de fico aqui e seja o que Deus quiser. No mesmo lugar da cozinha, olha, nunca pensei nisso antes, parece que o cheiro…aquele cheiro a floresta que o Pedro tinha sempre, a camisa de quadrados vermelha, flanela, lavar e andar dizia a minha mãe, e ele sempre com aquilo vestido. Já passaram muitos anos, Mariano…vais chegar à escola com cara de choro? Ele ia ser de nós o mais livre, em Paris ou assim. Eu estava a salvo mais uns anos…só me podiam chamar para a tropa lá para 69. E em 69 já estava tudo diferente, Abril de 69, que pacóvios que somos, um ano e um mês depois dos franciús começarem lá com a algaraviada. O Pedro podia ter estado lá. Mas não esteve, e 69, já não tinha dedo, nem Pedro, nem deus. Já tinha vindo para este país fazer piretes*** aquela escumalha toda. Nada de macaquinhos no sotão. As besteiras que se fazem por crendices…
Boa tarde turma, sou o Mariano Gonçalves e vou-vos dar português este ano. Copiem isto por favor: “ A religião! A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar comum a todos os brutos, o terror.” É do Eça.
Professô, sua mulher ligou, quer que você passe a comprar frescal!
Oh meninos tão de que se riem?!? Diga-lhe que sim!
Esta mercearia é mesmo fim do mundo…Marília, o frescal?
Chave, carteira, frescal que disto não há em Portugal…ora as luzes da camioneta…vamos lá.
Será que ela fez empadão? Hoje é dia de empadão.
Olha-me isto, outra vez deixaram aqui a galinha com a cachaça?! Estes macumbeiros são do melhor, eu tiro, eles põe! Quantas vão?…Quatro ou quê esta semana. Freio de mão. Deixa lá ir buscar mais uma, vou levar para o pessoal da fábrica tomar quando voltarmos. Este pessoal não se convence que é preciso ser muito estúpido para achar que cachaça à beira da estrada serve para mais alguma coisa que para eu levar para casa…Ai esta galinha é a de ontem, reciclam pelo menos. Oh palhaço, baixe as luzes, estou deste lado, mas estou…
E de repente Pedro, eu vi na garrafa iluminada por um segundo… uma mão sem dedo, um velho de nariz achatado, olhos apequenados, sem cabelo, eu vi um velho fracassado, vi que perdi o pai, a mãe, o tio, a ti, a Portugal e à vida que era para ser minha, vi que agora deixarei esta que foi minha para ir para lá tomar conta da fábrica do tio, a mesma que me roubara o dedo..Eu vi Pedro que passei a vida toda a pensar que fazia piretes ao destino, com o dedo que o destino roubara…e sou um velho que bebe cachaça roubada à fé alheia, que se ri do se deus quiser de sua mulher, dos medos de lobisomem de seus netos…a vida fez-me piretes a mim, a ti, a todos…vocês pelo menos não estavam tão sozinhos, tinham o padre pio, o Jesus e o curupira…
Deixei lá a garrafa Pedro, foi-se-me a vontade de rir..Sou um velho a falar com um fantasma, olha Pedro, vou fazer de ti o meu santinho particular…

*Zeca Afonso
** Adília Lopes 

***piretes (gesto de mandar alguém tomar no c.)
 Desenvolvido como tarefa para a oficina de escrita criativa da Noemi Jaffe.

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