sábado, 18 de junho de 2016

domingo, 12 de junho de 2016

Marco António III

Ali ficou vendo a luz mudar. Primeiro acariciara os tacos de madeira da entrada da cozinha, depois lentamente como numa valsa desconhecida foi-se deslocando, graciosa, o bar que era de sua avó portuguesa, a livraria magrinha magrinha mas que exibia orgulhosa os clássicos em edições de bolso, a mesa de jantar com suas frutas de plástico, a televisão velha com o seu crochet encardido...sedutora saíra pela janela, escondendo-se num farol de rua, desmaiado e abafado como quem denuncia uma mentira.
Não se pode dizer que pensava sobre a frase do estudante...para pensar fazem falta palavras. Naquele silêncio ele repetia músicas sem parar, como que tomado por um frenesim do passado. As músicas que escutava eram fragmentos da sua infância...o meu chapéu tem três bicos, o jardim da celeste, atirei o pau ao gato, ciranda cirandinha...frases soltas da sua professora primária, da sua avó, do seu avô, frases soltas de ninguém em particular...um padeiro, a peixeira. Fragmentos do passado que como estilhaços de granada feriam algo escondido nele.
Pensou por um momento que pensaria alguém que o encontrasse ali, naquele escuro, naquele silêncio. Imaginou que a pessoa saltaria em sobressalto, que se agitaria e se indignaria com ele por esse comportamento bizarro. As pessoas não gostam de excentricidades. Só para as estrelas lá em Hollywood ou para a Ana Maria Braga. Taxista, no escuro, pensando, não dá. Ninguém chegaria de surpresa acabou por pensar, a diarista vinha só às quintas, e pela forma como ela limpa nem se daria conta se ele estivesse ali, estático de morto ou estático de atormentado.
Porque lhe tinha parecido tão estranho que aquele moço, visivelmente perturbado em sua falta de sono, lhe dissesse que não "pegava" com ele ser taxista?! Acaso "pegar" era coisa que lhe interessasse?! Acaso um jovenzinho intoxicado em café Pilão forte saberia o suficiente das coisas da vida como para se lançar em comentários alheios?
A resposta retornava a mesma...algo que uma verdade tinha sido dito. Uma verdade do afecto, inesperado, gratuito, improvável entre um passageiro e seu condutor.
E essa verdade encontrara-o, por mais cliché que pareça, encontrara-o nu.
Haveria verdade nessa verdade?
Pode-se saber sobre a natureza do outro, assim, num piscar de quilómetros?
Era difícil pensar com um carrossel de músicas antigas latejando os neurônios, aquelas músicas, porque raio se apresentavam agora, ali?
Pensou ver a novela. Malhação? Já passara da hora. Mesmo sem ele, essa tarde conseguiriam visualização recorde. Algo que lhe esvaziasse a cabeça. Que a silenciasse.
Preciso, acendeu a luz, a música e olhou a geladeira.
Não...
Era tema de palavras.
Apagou a música, acendeu outra luz.
Pegou num livro, não lido. Abriu.
"(...)para levar uma vida que, por ser destituída de esperança, tornava-se também uma vida sem qualquer espécie de ressentimento."*
As pombinhas da catrina voaram e a frase ficou ali repetindo-se.

* O primeiro Homem. Albert Camus

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Marco António II

Ajeitada a camisa, o cabelo, o pelo que fugia rebelde por entre o botão da camisa, ele saiu, tilintando chave, assobiando como filme  a preto e branco, ligou o carro, calibrou o ar condicionado e saiu. 
O primeiro cliente era a clássica mãe desesperada: dois filhos, vinte mochilas, o atraso que seria imperdoável hoje, hoje viria seguramente uma notinha para casa...A viagem começou agitada, a criançada falando alto a mãe segurando o choro com as palavras, as mochilas indo de cá para lá. Ele colocou Mozart. A criançada acalmava sempre com o Mozart. Em menos de cinco minutos o silencio se instalara, a mãe abrira finalmente os olhos, tocou-lhe o ombro: obrigada.
O segundo cliente era bem diferente, farialimastyle, executivo, alto, duro. Reclamou que a interpretação do pianista era brega, recomendou outra e saiu bem na frente de uma conhecida casa de massagens.
O terceiro era com certeza estudante, as olheiras, a barba por fazer que dizia baixinho não não é por moda, a mochila rasgada carregada como a cruz. Pediu para atravessar a cidade, chegava tarde ao exame. Lizst quebrou-o. Olhando pela janela, sendo olhado pelo retrovisor. Quando chegou era um farrapo, sem força para recolher a mochila, o saber, o olhar.
Ele ofereceu a corrida. A supresa deu-lhe uma força qualquer...seria um acredito em si velado?
Ele dirigiu de regresso, odiava campus universitários.
O moço chamou-o pelo retrovisor esbracejando.
Marcha a ré.
Sabe você não devia ser taxista.
Ficou embasbacado.
Nunca tinha pensado que havia opção.
Era meio dia mas regressou a casa.
Desajeitou a camisa, ignorou a madeixa rebelde, o pelo preso no botão e sentou-se na poltrona coçada em silêncio.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Marco António-I

Quem olhasse para ele, todas as manhãs frente ao espelho gasto, compondo sua camisa, seu colarinho, seus punhos, quem o visse sempre ali às 6.49 de cada dia, chovendo ou soleando, com frio ou calor, pensaria que sim, que o homem é mesmo uma criatura de hábitos.
Ele diria que não, que é uma questão de disciplina. Ele não precisa de se ajeitar nesse horário, daquele jeito, dia após dia, é logística pura e dura.
Ele em geral detestava qualquer redução dessa ordem: o homem é um animal de hábitos,  o passarinho que acorda cedo apanha a minhoca e por aí fora...
O estranho é que olhando para ele, qualquer um sentiria que estava diante um estereotipo.
Eu poderia dizer-vos: Sabe aquela clássico taxista, ligeiramente pelado mas com patilhas para compensar? Sabe aquele típico taxista de brinco de diamante na orelha, não aquele de verdade, mas o que se vendia lá nos oitenta às mocinhas...um cubo de plástico barato bem cheio de brilho para ser mais epicentro do olhar que o deus me livre, sabe qual? E todos vocês já o imaginariam tal e qual o podem ver. Camisa de riscas em cores fortes, aberta mostrando o peito farfalhudo, e ocasionalmente o palito que dá o toque ibero-italiano que termina de demonstrar-nos que este homem se chamará Silva, Peres, Lopes com s ou com z. Pode ser que seja italiano...hum...acho que não. Seu estilo é mais de beira mar, um taxista de Benidorm, Albufeira, algo assim entre o autentico e o para turista ver.
Enfim, todas as manhãs 6.49 concertava sua camisa, 6.51 tomava o sei café de filtro, mordia a sua torrada de pão italiano besuntada de queijo creme comprado por atacado e saía, tilintava o seu chaveiro na rua ainda deserta, assobiava como se estivesse num filme a preto e branco.
Chave na fechadura do carro e vamos procurar o primeiro cliente. Assim ia a sua vida. Toda típica, toda rutinária, toda de estereotipozinho.
Excepto numa questão.
Ele gostava mesmo era de música clássica. E opera, ele disfrutava muito da sua opera.
Mozart, Beethoven, Liszt, Händel, Bach até coisas mais recentes como Rufus Wainwright.
Cada passageiro abria a porta, olhava para aquela personagem que educadamente descia o volume para soltar um informal cumprimento e sorria pensando que tinha diante si o esperado, o confiável, embora provocando uma certa antipatia...
Quando ele subia o volume o silêncio instaurava-se, caía pesado como cortina de veludo. 
Que dizer quando o óbvio nos surpreende?
Ele pensava que era a música operando sua magia nos ignorantes, sentia-se um profeta do passado, um che guevara guerilhando contra o funk e satisfeito oferecia ao retrovisor um sorriso como uma marcha triunfal.

domingo, 5 de junho de 2016

warwick

Warwick recebeu mais tarde uma carta. O Homem-sem-nome descobrira o seu refúgio, brincando de Nessie num lago que mais parecia um penico. De um gigante. Mas um penico.
Homem-sem-nome ficara capturado pelo seu encontro. No mesmo dia perdera um pai, ganhara um meio irmão. Ganhara vários se queremos ser precisos. O vai e vem de viúvas e filhos únicos, aproximando-se e distanciando-se da gaivota putrefacta...contudo, só aquele, aquele como ele, sem mãe, sem ser sugado para o movimento da areia movediça dos sentimentos sem sentires.
Tinha havido uma conexão, um doer que em ambos doía. Ficara a sede, que só a um cedia. Warwick oferecera, sem disponibilizar.
Nada disso lhe importava.
Ele queria falar sobre a doença da morte, sem ser com ela.
Ela desaparecera um pouco antes do fim.
Dissera tudo quanto havia a dizer, com o seu corpo, o seu cheiro, as suas pálpebras fechadas numa mistura de confiança plena e desconfiança absoluta...ficara com saudades? Teria que sentir para sentir a falta. A falta não se inscrevera nele. Ficara só a constatação de um espaço.
Um vazio?
Não, um espaço. O espaço branco na cama. O espaço de quem conversa. O espaço de um espelho.
Warwick era um estranho espelho...ele percebera isso. Estranho, roto, descosido...mas um espelho.
Wawick, quer vir jantar cá a casa?
Disse que era uma carta, mas foi imprecisão minha, era um bilhete...um bilhetinho com selo.
No selo nem havia cuspo, era cola, daquela antiga com espuma na ponta, vomitando sempre um pouco nos dedos, oferecendo-se ao plástico da tampa e ali grudando para fascínio de alguma criança.
Para Warwick no entanto aquilo era uma perseguição, uma espionagem, uma confusão de algum tipo que jantar que porra nenhuma!!
Assustado comprou três garrafas de whisky, e abalou nervoso para casa de uns primos de quem não gostava, a quem não visitava jamais e que ninguém no seu perfeito juízo se lembraria que lhe poderiam ser alibi nessa fuga.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

doença do doer

Dois irmãos: um crocodilo, um homem. 
Um nasceu na Escócia, outro na Bretanha.
 O mar de um é diferente do mar do outro.
 Se a tocarmos uma nos gela, a outra nos escalda de frio.

Warwick e o Homem-sem-nome são filhos do mesmo pai. Esse pai era uma gaivota. Voou demasiado rápido para demasiado longe, deixou suas mães com ovos por chocar. Uma pariu com dor e a outra sangrou-se sem se dar conta.
Encontraram-se uma só vez Warwick e o Homem-sem-nome. No funeral do pai.

O pai Gaivota morrera em Gales, era especialista em renunciar a raízes, deixava um ovo e tinha que partir, jogando uma espécie de passa ao outro e não ao mesmo com o destino.
Uma gaivota morta, pensou o Homem-sem-nome, chegava até as suas narinas um gás fétido e adocicado, quase fresco por momentos, quase doce por outros. O cheiro do mar negro, pensou, uma gaivota morta, uma alga de mortalha. O cheiro era tão forte que invadia todos os sentidos, parecia ser visível, ser palpável, ter gosto de horror ser veludo de tristeza. Era a morte sem doença. O seu pai morrera de uma morte diferente da sua, isso era o que ela diria…
O funeral era um carrossel, desfilavam desconhecidos, gastos como cavalos de ferro à beira mar. Entrando e saindo, entrando e saindo.
O Homem-sem-nome chegara cedo porque nunca se atrasava. Warwick chegou tarde porque nunca se apressava. O Homem-sem-nome chegou sem mais, Warwick chegou demais. 
Grande, verde, com cheiro de limo em pedras frias. Entrou rompendo o carrossel que redondo girava em um burburinho, como uma onda que esquecida de si desmaiava na areia, uma viúva e um filho, uma viúva e um filho, um filho e uma viúva…
Entrou espirrando, um espirro e outro e outro. Warwick pisou o Homem-sem-nome.

O seu pé está sobre o meu. E daí? Daí que não pode. Então tire-o. Não posso, porque estou aprisionado pelo seu pé que é mais pesado que o meu. Então se não o pode tirar porque se queixa? Não é assim que deve ser, não é o que vejo, você se pisa, pede pede desculpa e tira o pé. Não sei de nada disso, se eu piso…pisei! Você é bem filho de seu pai. E você? Eu não sei o que é ser filho de meu pai, estou descobrindo agora, com o seu pé quebrando o meu. Tem dor? Tenho a sensação de que algo está como não deveria estar, não sei da dor. Não conhece a dor? Não, e você? Não.


Silenciosos olharam-se. Algo parecido a um reconhecimento. Um espelho descosido, quebrado, estilhaçado, mas se tocassem com sua mão ou sua pata rugosa…não produzia corte, não ardia, não cedia.
O corte já tinha sido, em algum lugar.

Você trouxe a sua mãe? Não, e você? Não, quer um copo?

Warwick mostrou a sua garrafa de whisky, escondida na sua saia de lã áspera com espaçados quadrados.
Malte antigo do ano que descasquei.
O Homem-sem-nome estendeu o copo, mas Warwick apontou com a garrafa as penas do pai.
Aquele salafrário nunca me conheceu, só venho para o conhecer hoje. 
O Homem-sem-nome seguia com seu copo a garrafa de malte, ansiava pelo cheiro agradável da bebida, supondo que ela afogaria todos os outros.

Eu vim para saber da morte, disse por fim baixinho, descendo o copo, desistindo do brinde com seu meio irmão, ela diz que eu tenho a doença da morte…Que estupidez é essa? A doença da morte é não amar nunca, não desejar, morrer sem ter uma vida que desague no morrer…Você dormiu com ela? Sim…Ainda assim andam com essas conversas da treta?

Homem-sem-nome não soube que dizer.
Warwick tomou o resto da sua garrada e mostrou-lhe como a sua cauda ondulava até à gaivota.
Podia-te comer, morder, estilhaçar…Ouviu o Homem-sem-nome.
Warwick saiu rompendo o carrossel, sem se despedir.


Tem a doença da morte, a doença de doer, o homem-sem-nome pensou.

Exercício para curso Noemi Jaffe na casa do saber

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Acordei meio acordado
de um sonho que não havia sido sonhado.
Tropecei assombrado,
no impedimento que não tinha ainda chegado.
Caí inteiro de peito aberto,
e um espelho terminou,
de beijar o sonho, que ninguém sonhou.
Mordi a língua que não dissera nada,
com um dente que se quebrara.
O dente ficou na língua,
cravando a lembrança do que não estivera.
Acordei meio adormecido
para uma ironia sem sentido.

sábado, 28 de maio de 2016

não tentar em casa, outra versão

Certas loucuras, estão repletas de um sentido outro.
Lucidez não compartilhada, inacessível. Espécie de misticismo da racionalidade.
Sabe tão bem, por momentos, ver o mundo como ele é, sem fantasias, historinhas, versinhos, ideologias. O suor de quem construíu estes caminhos versus o perfume da menininha no início do mês. O saco do futebol dos homens que se negam ao tempo que passa, resistência que me agrada, simpatizo. Não serve de nada.
Ver a realidade, com sabor de sangue na gengiva, demanda ação. O animal que vive em nós, morre de fome no pensamento, ainda assim, planeia.
Há duas semanas venho seguindo a mulher de casaco amarelo. Onde vive, onde trabalha, copo do strabucks Genoveva, tem nojo do botão de abrir as portas. Não é por isso que a vou matar . Vou tirar-lhe a vida que arruína vidas. Live and let die gritava Paul McCartney a plenos pulmões, não vives deixando viver, alguém tem que dar um jeito nisso. Justiça? Se necessitasse justificar-me…a mulher do casaco foi confrontada por uma outra mulher, amigas. A Genoveva dormia com o marido da outra, lera uma mensagem…chorava. Telenovela de cordel no vagão das oito. É por isso que a mato? Em parte. A justiça que não se conseguiu reclamar apenas chamou a minha atenção. Amarelinha gosta de passar na frente, de velhos, de deficientes, de crianças, de grávidas. Espera depois da limitação, acotovela, sempre procurando a sua vantagem…é por isso? Quem sabe…ela deve morrer. E pensar que serei eu a olhar no seu olho em seu derradeiro parpadear…traz-me paz, um alívio, um gosto de azeite e sal no pão da manhã. Imagino as minhas mãos naquele seu casaquinho, a força que terei que fazer, o seu pé apenas tocando o meu enquanto o imobilizo, ela caindo, deixando-me saborear a sua despedida.
Um assassinato como deve de ser. Penso nisso deleitada, adoro a perfeição. Não a conheço, nada me liga a ela. 
O metro fechando, sem câmaras …Um pequeno gesto para recolocar este universo fragilizado.
A sós, avanço para ela, os meus sapatos ecoam no túnel como um coração que palpita. Chego tão perto que sinto como cheira a limão, os cabelos a pantene, vem aquele gosto na gengiva, tudo faz sentido…previsível Genoveva. Respeito minha condição de vingadora, a lógica animal reconhece o humano…
Desculpe.
Que é?
Sua mãe vive?
Que pergunta é essa?
Seu pai, sua mãe… vive?
Não...
Aí está, o meu coração acelera-se, uma alegria invade-me, tenho sede. Ponho as mãos nos seus ombros, quase  peito, quero sentir o seu coração que lateja…Saboreio nos seus olhos, a perplexidade. Um grito que pede ajuda,enraivecido, ao mesmo tempo pede desculpa. Prendo o seu pé e empurro. A flexão do meu braço, como um pássaro libertando as asas. Oiço sua espinha.
Adeus Genoveva…
Ao longe o apito do trem.

Finalmente a paz e uma música que ecoa…“Ge- ne-ve- pas travailler, Ge- ne- ve- pas déjeuner, Je veux seulement oublier, Et puis je fume…”


Exercício de escrita criativa. Curso com Noemi Jaffe. Casa do saber.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

não tentar em casa

O ruído do trem que chega, o trem que vai. Não sei quem chega, não sei quem parte.
Colocaram a fita amarela para os cegos.
 Terão medo que algum cego caía sem querer na via?Ali à frente a clássica mulher que gosta de ter vantagem sobre todos. Na frente do traço amarelo. Fora de jogo se fosse bola.
 Será que ninguém pensa em empurrá-la? Que aconteceria se eu fosse lá e desse um empurrão?
Ela teria capacidade de resposta? Alguém saltaria para a salvar como o anjo de "puerta del angel". Será que se ela se deitar nas vias o trem passa por cima e ela sobrevive, como nos filmes? Será que eu iria preso? Gide dizia que era o assassinato perfeito. Nenhuma ligação entre a vítima e o assassino. Aqui o problema são as testemunhas...Teria tempo de fugir? Quero fugir? Qual seria a pena? Dez anos de prisão? Será que prisão é tão insuportável mesmo? Isto não é pior?
Ai a cabra da mulher não deixa passar a velha da bengala.
Apressada, querendo tirar vantagem e com um casaco amarelo que fere a vista como estes guinchar de rodas enferrujadas fere o ouvido...ou é o travão? Infernal, ruído infernal do metro. De toda esta gente mastigando seus donuts com cafe com leite, suas sanduíches de queijo manchego, vão todos para la madre que los parió.
E se empurro a mulher, vou lá, encosto a mão devagar no casaco brilhante dela, e empurro. Vejo como ela cai, não sem primeiro resistir, esbracejar num gesto de urgência, emitir o som de um susto, de uma zanga e ao mesmo tempo um pedido de clemência, de perdão.
O sapato é barato, vai quebrar, vai resistir à passagem do comboio, vaso ruim não quebra.
O que tenho a perder? O que não está perdido ainda?
Será que ela tem algo a perder? Isso não importa, será que alguém a perderia?
 Casaquinho amarelo prepotente, tirando vantagem, sapatinho de verniz barato...não deve ter.
E a mãe, mãe não se recupera de perder filho.
Desculpe.
Que é?
Sua mãe vive?
Que pergunta é essa?
Seu pai, vive?
Não...
Vi o seu rosto perplexo, marcas de base alaranjada, olho verde bonito ainda, lentes de contacto secas, um trejeito de irritação no lábio superior, cheiro a canela com baunilha, o cabelo precisando de ser pintado. A raiz espreitando, única verdade no cacto em questão.
Coloquei a mão no casaco amarelo, como uma carícia no ombro, deslizei a mão do ombro para o peito, olhei no olho dela.
Senti nas minhas mãos um coração acelerar-se, não sei se surpreso ou assustado.
Uma calma imensa se abateu sobre mim.
Empurrei-a rápido, preciso.
Caiu de costas, e ficou de sapato perdido me olhando de volta.
Ninguém se mexeu na plataforma.
Agora eles tem câmaras, podem ver que fui eu, que se foda.
Veio o trem rápido tentando travar.
Respingou um pouco de sangue na minha camisa de flanela.
Abriram-se as portas, automáticas em sua frieza.
Passe você senhora, disse à tal velhinha.

Exercício escrita criativa
Procurar/
curar/
colar.

by  Tom

terça-feira, 24 de maio de 2016

Filomena VI

Dormi sem meias desde então. Dormi sem meias e de unhas pintadas. Fui à depilação.
Alisei o cabelo. Comprei um vestido novo.
Tudo isso enquanto planeio o roubo.
Entrarei bem vestida no banco, com o cabelo de outra cor e óculos de massa, irei ao balcão do Zé, logo depois do moço das quintas feiras.
Mostrarei uma arma de plástico que comprei sábado passado na vinte cinco de março, ah detalhe, levarei um vestido novo com mangas de sino, assim a arma será visível mas não será facil realmente observá-la.
Me passe a grana ó fulano...todos no chão que ninguém tenha ideias heroicas!
Tal e qual nos filmes, guardo a grana numa malinha de viagem luis de vito comprada na Liberdade. E aí o truque de mestre, sair pela porta dos fundos, que só a Ermelinda usa quando limpa a agência.
Ainda não decidi se regressar de ônibus, taxi ou uber.
Taxista faz muitas perguntas, mas uber fica com nosso registo...talvez ônibus, mas tenho que me trocar em algum lugar...devia ter aquela roupa, como nos filmes, que se dá um puxão e sai. De stripper mais ao menos.
Também preciso uma peruca, um lenço, ou um boné...roupa desportiva, o boné para dentro e a luis de vito? Ideal seria guarda-la.
Melhor ir de carro, estacionar perto, sem ser garagem...trocar-me no carro e guardar a mala. Voltar de ônibus. Vou buscar os meninos à escola. Peço a minha cunhada que os leve para casa deles, ela tem piscina é verão...volto em metro, pego o carro com outra roupa ainda...
Volto para casa tranquilamente, entro pela garagem que não tem câmaras e guardo a grana no cesto das maçãs.
Quando o Zé chegar a casa ofereço-lhe um café e uma fatia de torta de maçã...
Será eu está bem assim?
Ou é melhor ter um alibi bem sólido?
Vou no médico, peço que me desdobrem o recibo. Um nesse dia, outro para a tal quinta feira...não é grande alibi mas de repente dá jeito...
O que vocês acham? Vocês poderiam ser meu alibi, na tal quinta feira eu não fiz nada fora do comum, seria verdade. Eu assalto esse banco todos os dias na minha cabeça...



segunda-feira, 23 de maio de 2016

Filó e a sua ideia V

Fomos ficando sem pão, vimos a manteiga rançar, e o café que eu passei de novo secou nas taças de todos os dias. O relógio da cozinha acusou o atraso, e o Zé não se mexeu.
Não vais chegar atrasado?
Vou, mas está tão legal a nossa conversa...
Olhámos um para o outro...
Vi lá bem no fundo do seu olho castanho, algo amarelo, ou dourado, algo que entendi como uma faísca, como um fogo, como um incêndio. Algo que não estava quando estendi a toalha lavada sobre a mesa, algo que não estava ontem, nem anteontem, nem antes de antes de antes de antes de ontem.
Já teria visto algo assim no Zé?
Claro que sim, o dia em que nos beijamos pela primeira vez. A primeira vez que viu Mari e Amandinho. O dia em que comprou sem primeiro carro.
Lembro desse dia em especial...eu estava angustiada com entregar todos nossos pertences a um desconhecido, ainda mais para alguém que vendia um mercedes tão antigo, em terceira mão.
Zé no entanto, estava confiante, estava cheiroso, se vestira bem para a ocasião. Foi nesse dia que saímos a passear pela última vez juntos. Nós em nosso mercedes, que se chamou Carmem em honra da avó espanhola de José. Fomos com Carmen até uma lanchonete, tomámos cada um uma cerveja black, um supimpa com bacon extra, e sorrimos muito. Antes de voltar a casa parámos a beijar-nos, a sentir-nos, a saborear-nos como adolescentes em filme americano. Umas semanas depois descobri que Carmen tinha trazido um presente...tristemente os motores deste se apagaram bem antes dos dela.
Fora essa a última vez que os olhos castanhos de José falaram de fogo...
Quieto na sua cadeira, olhando-me fixamente, resistindo-se a levantar-se, a correr para o trabalho, para a hora marcada, para a rotina...José tinha percebido. José tinha lido a minha ideia. A ideia que eu não contaria jamais.
Fiquei a olhá-lo assombrada, no meu olhar não havia mentira. Não diria, jamais, nada.
E você nem sabe Filózinha como são alguns de nossos clientes habituais. Tem um moço que só veste de preto, sabe aquele preto que parece pele de vaca mas não é não...é imitação da riachuelo, sabe qual é? Esse vem toda a quinta feira, traz um monte de bilhetes dentro de um saco de papel da farmácia...sempre deposita quantias abaixo do limite a declarar, eu teria que chamar até o chefe para assinar ele o depósito, mas o cara traz sempre dois reais a menos...dois reais Filó. Por dois reais eu assino o depósito, por dois reais eu não posso fazer perguntas...e o cara nunca diz muito, magro magro, parece um vampiro, sabe como é Filózinha...como dos filmes. Esse é o de quinta feira, sem dúvida é quem deposita mais...

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O primeiro poema do meu filho Tom foi o seguinte. A Ana Lúcia perguntou-lhe se ele escrevia, respondeu que sim, poesia, sim...Então diz aí um poema Tom!
Resposta dele:

Lixo!

Hoje, pegou numa caneta e no meu caderno.
Queres desenhar ou escrever?
Escrever! 
Conto, romance ou poema?
 Poema! Quer ver um poema lindo, quer ver?
Quero...

Rabiscou isto...

O que diz filho?

Mãe...pai, vó!




Filomena e a sua ideia - Parte IV

Ele foi falando e eu fui ouvindo. Distraidamente fui pelando a cola de sapatos que ficou grudada no meu dedo, fui tocando com esse dedo, recoberto de cola, um pedacinho de miolo de pão.
Enquanto ele falava, e eu ouvia o que ele dizia, fui amassando devagarinho o miolinho, até ele em sua textura de borracha ser uma cobra, um caracol, um boneco de neve...
Filózinha, você está bem?
Era urgente disfarçar.
Comecei a contar da cola que saíra rápida do tubo, que acabara sujando a mesa onde colava a sola do sapato de Amandinho. Continuei falando, rápida, sobre o pão que estava cada vez mais caro, sobre como todo o mundo reclamava da Dilma mas agora vamos todo ver como fica tudo igual, como o moço da entrega da fruta contou que tinha dezasseis anos e foi arrumar filho, já viu se isso acontece com nossos meninos? E segui desbobinando um monte de lugares comuns.
Quando senti que ele já estava bem distraído com a minha aparente volta à realidade nossa de todos os dias, voltei a fazer perguntas.
Mas amor, acabaste por não me falar se o moço que só vê de um olho tem nome? Ele conduz?
É amor ele conduz sim, o primo dele é que fez o exame médico, aldrabou um pouquinho o resultado. Até mesmo lá no trabalho, ninguém sabe de certeza que ele não vê do olho direito.Todos fomos percebendo aos poucos...teve um dia que a Rosely pediu para ele grampar umas folhas, ela atirou o negócio e ele não teve nenhuma reação, ficou sangrando um monte e com o rosto roxo por uma semana...
E aí como ele justificou isso?
Falou que o café da lanchonete estava fraco de mais...Outra vez o António dos negócios imobiliários, ofereceu-lhe uma bala, enquanto ele olhava a porta, foi oferecendo oferendo oferecendo, cada vez mais perto, até que pisou o Aylton...
Sério?
Você não lembra? Eu te contei esse dia...
Ai amor, é muita coisa na cabeça...e então, como ele justificou isso?
Falou que estava muito atento à porta...
De que olho mesmo é que ele não vê?
Do direito...então ele fica encostado à porta, só olhando para fora, os carros que passam, as motos que zumbem, os clientes que vão chegando para o caixa eletrónico e os que entram na agencia...
Então e os que estão dentro do banco?
Acho que esses ele não vê...que pergunta estranha Filózinha...


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Filomena- parte III

Sabe Filózinha eu não sei porquê ele faz isso, tem vez que eu quero dormir, e não consigo, fico quieto só pensando porquê ele faz assim...uma hora sempre, mas uma hora Filó, de relógio digital, tá lembrada, daquele que muda o numero e pronto? Então ele faz assim, ou chega às 8.00 ou às 10.00. Ninguém nem vê ele dobrando a esquina, ou tomando café no bar. Ele aparece. Também não sei se ele mora longe ou perto, a Vanusa até que já perguntou para ele, mas ele esquiva a pergunta, olha para outro lado, fala de outra coisa, não responde não.
O Isaac, esse você sabe, outro mistério, até ja experimentou de ficar indo na lanchonete da esquina, sabe qual é, a que de quarta-feira não serve feijoada porque acha ruim para os vegetarianos, então, ele ficou lá desde 7.45 só esperando ver o Leandro aparecer, e o cara, o cara apareceu 9.59 do nada e cruzou a porta. Ainda levou maior bronca o Isaac, porque não saiu a fazer os recados na hora certa, você sabe que o Boris gosta que ele vá no banco logo às nove, porque não tem tanta fila. Esse Boris, vou-te falar, não sabe o que tá falando, todo o mundo sabe que correio é cheio demais quando começa o dia....
Foi falando cada vez mais estranho, sua voz ecoava na minha cabeça como dentro de uma embalagem de palmito de pupunha...o Zé trabalha num banco....porque é que eu não roubo o banco?Nunca ninguém me associaria ao crime, eu sou a costureira que cuida da casa, dos filhos, não tenho cadastro, não tomei nem multa, todo o mundo sabe que eu sou muito honesta, devolvo até carrete de fio quando a pessoa traz para eu usar e acabo não gastando tudo...Ninguém nunca nem pensaria que eu poderia fazer algo assim...será que eu preciso de ajuda? Acho que não, aí taria a genialidade do golpe, eu entro e saio todo o mundo me conhece, mas ninguém vai nem reparar que eu estou ali. Não posso falar nada para o Zé, ele não aprovaria nunca um roubo. E se aprovasse, daria bandeira, de certeza. Além do mais, há tanto tempo que eu não tenho um segredo...algo que não se diz para o marido, nem para a moça que faz a unha, nem às vezes, para mim mesma. Este é um segredo que eu não posso nem me contar muitas vezes, porque se eu me disser Filó vais roubar um banco, eu vou ficar pensando como seria essa Filó que rouba um banco? Soa até a filmes do faroeste, ou aquele do Batman...não parece muito real. Mas se eu não me disser nada, se eu ficar a Filó que sou sempre, e for costurando um plano como quem faz a dobra de uma saia, se eu for planejando como entrar e sair sem chamar à atenção, então pode dar certo. Uma coisa só daquela vez. Roubo o banco um dia e pronto. Como posso justificar o dinheiro para o Zé? Fico com ele só para mim, será que eu poderia deixar este homem? Ir embora com a Mari e o Amando? Será que eu sentiria a falta dele?Será que os meus filhos sentiriam a falta do pai? Será que o segurança me vê se eu entrar pela porta dos fundos? Terão câmara ali? Só tem um segurança?
Amor, e o moço que só vê com um olho, como é que ele se chama?

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Filomena- parte II

Então, ontem dia que dormi com os pés ao léu, foi um dia fora o comum, diria até que um pouco louco, se não acreditasse tanto como acredito na ideia absolutamente perfeita que eu tive...
Para vos contar esta ideia, a vocês interlocutores confiáveis, mais confiáveis que padre ou psicanalista (será que um psicanalista se veria obrigado a chamar a polícia e contar os meus planos? Não sei, mas certamente supervisaria...e os padres, os padres já todos sabemos que não são de confiança, ou a expressão rádio vaticano seria inexistente...)Então, vocês que ficaram capturados por usar meias ou não usar meias, hamlets da roupa interior, vocês precisam de saber algo mais sobre mim, para perceber o porque desta genialidade inesperada.
Eu sou a Filomena, casada com o José, mãe da Marília e do Amado. Costumamos começar por aí, certo? Quem temos, sobretudo se o que temos não aplica.
Vivemos na zona leste, um bairro não considerado nobre, contudo o nosso apartamento é bastante bom, noventa metros quadrados, zona de lazer em que a piscina, costuma funcionar pelo menos metade do ano. Temos um carro, chevrolet negro e não somos religiosos. Casámos cedo, eu e o José, acho que se pode dizer que não somos pessoas de encanar a perninha à rã.
Vivemos tranquilos, cheios de rotinas, levando os meninos à escola no horário, recolhendo os meninos da escola bem na hora de ponta, cozinhando lentilhas à terça feira e feijoada ao sábado. Tudo ordenado em nossas vidas.
Tudo excepto o país em que vivemos, que já será de vosso conhecimento, a necessidade profunda de arrumação geral que temos, aquilo que a minha tia Lucilda chamava de limpeza de primavera.
A tia Lucilda, agora que penso, também falava muito de meias. O marido tio Amâncio, espanholasso usava sempre meias na hora h, coisa que ela contava intrigada. Aparentemente, ele lera que ajuda a ter uma vida sexual mais activa, pular essas preocupações de etiqueta, ou o algodão numa extremidade, ajudava a que tudo fosse que nem seda, noutra? Fazer amor à inglesa, era como ele lhe chamava, quando se defendia publicamente das confidencias da  esposa. Suponho que nisso como em tudo, não há muitas regras...
Enfim, vamos à ideia.
Hoje como todas as manhãs, levo os meninos à escola em jejum, assim que acordo tomo o comprimidinho para o ferro, chupo um limão e corro para o omnibus.
Na volta preparo o pequeno-almoço para o Zé e para mim, e conversamos um pouco.
Ele toma café com leite, eu café puro. Em geral ele conta coisas lá no banco em que ele trabalha, e eu escuto, porque ninguém fala das linhas com que cose roupa alheia...Lá na sucursal do Zé, acontecem sempre as coisas mais bizarras.
O chefe que chega sempre ou uma hora mais cedo ou uma hora mais tarde, a companheira de balcão que pinta as unhas de vermelho bem garrido, e se veste como judia ortodoxa, o segurança que não vê de um olho, o motoboy que vai ter o sétimo filho, a senhora de idade que se nega a tirar a senha de prioritária...Tudo ele me conta ao pormenor, fascinado, e fascinada eu escuto. Não pelo que ele conta, mas por ele, gosto demais dessa narração que ele cria, dos jeitos com que conta, os olhares que descrevem tão bem o que ele sentiu...
Gosto muito do meu Zé, ainda que às vezes senão fosse por esta narração telenovelesca, eu não conseguisse nem me lembrar que ele existe...
Levantei-me para trazer o açúcar e ao sentar de volta pensei:
Que é que ele tá falando mesmo?
Decidi escutar o que ele diz, mais além de como ele diz, e de repente algo apareceu em mim...

terça-feira, 17 de maio de 2016

Filomena tem uma ideia- parte I

Os meus pés à hora de ir dormir: o termómetro do meu humor.

Quando era criança dormia com meias. Meias, soquetes, peúgas: nunca soube qual era a denominação apropriada para aquele bocadinho de algodão que, preferentemente com bonecos, forrava a extremidade menos importante do meu corpo. Importantes eram as mãos que desenhavam, apanhavam um colega que corria, as mãos que tapavam os olhos enquanto contávamos até dez. Os pés foram uma descoberta posterior, por acidente.
Um dia, a dona Alice, porteira de reputação intermédia, apareceu em casa às 21.30. Saber como estamos, como encontrámos a casa, como estão as meninas, bla bla bla. Presenciou assim, por casualidade, a nossa ida para a cama. Quando temos oito anos, achamos que todos os meninos e meninas vão dormir igual que nós: pijama do snoppy ou da galinha pintadinha, a marca da geração e do género varia mas fora isso: homogeneidade.
Contudo, dona Alice ficou embasbacada de espanto, de terror, de profunda indignação: dormíamos de meias (soquetes, peúgas). No mundo da dona Alice, note-se que o d de dona é em letra minúscula para melhor caracterizar a personagem, todo o mundo dorme sem meias, porque as meias, vejam bem, mesmo quando acabamos de tomar banho e as calçamos lavadinhas: são sujas.
Ponto final parágrafo, as meias são sujas. Também os soquetes e as peúgas.
Aquele evento mudou a minha percepção das extremidades, os pés eram assunto nacional, e as meias assunto racional, tiravam-se antes de dormir.
O inverno cobrava o seu preço, no verão fazia até sentido.
Um dia por acaso dei por mim a recordar esta história, e decidi que se foda a dona Alice e as suas teorias bizarras (relembrei o caso dos smurfs desaparecidos em uma das visitas de seus netinhos) e calcei meias, soquetes e peúgas de novo.
Para que vos estou então a falar de termómetros? Indignados vocês foram lentamente pensando se se dorme com ou sem meias, certo?
Hoje em dia eu durmo com meias, quase sempre, verão incluído.
Cada tanto, acontece de me deitar e perceber que não consigo manter as meias...uma incapacidade de me abstrair desse tecido sobre os dedos dos pés, os calcanhares, o incómodo do elástico sobre o tornozelo...as peúgas falam-me, criticam-me, chamam-me...ponho os pés de lado, para cima...eles rebeldes resistem e formigam, ou doem um pouco fazendo o dormir uma tarefa impossível.
Nesses dias, aprendi a aceita-lo, eu tiro as meias.
E nesse dormir de pés ao léu eu vejo uma rebeldia contra o quotidiano, uma liberação filosófica, uma espécie de felicidade.
Ontem eu tirei as meias.
Perguntam vocês porquê...
Algo aconteceu de facto, só que não vos posso contar hoje...tenho que pôr a roupa a lavar.
Já volto...

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O pinterest acaba de me sugerir um match com alguém. Entro a ver o que em comum temos, e fico deslumbrada com tudo o que a Mémé pineou. Efectivamente temos um gosto muito similar...Sou obrigada a perceber que o meu gosto não combina com a minha vida. Que o lugar onde vivo não combina com a casa que sonho habitar. Será que a Mémé sofre a mesma despersonalização?
Enquanto isso uma formiga atravessa rápida o teclado.
Desculpa formiga, aqui também não podes viver....

 O que aconteceu conosco gente?
Quando foi que deixámos de ver Pretty woman e sorrir felizes com esse desfecho?
 Quando foi que os aristogatos deixaram de ser, possíveis para nós? 
Quando foi que deixámos de acreditar que o amor é uma força que chega onde quer que seja, sem olhar a beleza, o dinheiro, o poder, o estrato social?
Quando foi?
Eu nego-me, nego-me a acreditar que tudo esta tingindo de dúvida. Para mim existem historias de amor, sim!!
E amores à antiga, claro! Porque não?
Amores como os das minhas avós, abraçando um casamento com um homem maior que elas, seguro dele mesmo, que lhes possa prover de segurança, entendimento, casa, filhos. Amores que são como novelos de lã que se enrolam a vida toda devagar, monocromáticos, seguros e ainda assim vibrantes, tácteis, capazes de construir suas camisolas, mantas, e impérios.
Amores de contos de fadas, amores proibidos, amores improváveis.
Amores que nascem de um olhar sobre o mamão-papaia de um senhor viúvo e entristecido e sua empregada. Ele descobrindo com ela o mundo da simplicidade, dos pequenos prazeres, e ela saberá que a torre Eiffel é como o amor deles: um feliz acaso.
Eu acredito em amores assim, aliás digo mais, amores assim, imprevisíveis e profundamente românticos são o sonho não só de jovenzinhas inocentes como de jovenzinhos.
 É o sonho que trazemos todos nós, rebelarnos contra estes tinders de hora marcada.
Com o Brasil como está, dividido, crispado, negativo, só a crença no amor sem fronteiras, um amor gratuito, generoso, puro o pode resgatar. 
Só quando acreditarmos no amor impossível, desinteressado, puro, crente a Deus: o amor que tudo pode conquistar, encontraremos as forças para acreditar num outro Brasil.
Marcela e Michel são a imagem viva desse amor de gata borralheira, que esses amores puros, desinteressados dão certo. Que se pode encontrar um homem inteligente, sólido, honrado e que se pode conseguir essa mulher que é bela, recatada e do lar.
E hoje um telhadista da periferia nos mostra como salvar o Brasil.
Marcela, Temer, não sintam mais vergonha desse amor, apostem na transparência único caminho possível para acabar com a corrupção, nos telhados que não sejam de vidro e mostrem ao brasil as três fotos de Marcela na intimidade!!
Assumo que cozinhando bolo de iogurte para o lanche da tarde, ou lavando os pés de Michel Miguel com água de rosas que ela própria espremeu pensando feliz nos dias vividos sonhando com esse amor que chega agora a governar a sua pátria amada…Lutem contra a corrupção hoje, mostrando que o vosso amor não é de mentirinha, que não é de interesse, mas um amor tão merecido como a sua presidência…

Mostra as fotos querido telhadista, hoje, está nas tuas mãos a construção de um novo Brasil.

quinta-feira, 12 de maio de 2016


A terra e o céu de Jacques Dorme.
                                                                              Andrei Makine
                                                                         CosacNaify

quinta feita de dúvidas

Como te despedes do que nunca conheceste?
Chove ou faz sol, e se chove faz calor, ou se chove faz mais frio?
Devo pensar que temos um novo presidente?
Chega a caixa branca e um papel, Ioke e lasa.

É, então...

terça-feira, 10 de maio de 2016

Mas não há dias que gostavas simplesmente de estar lá? Perguntara-me um dia uma amiga. Não soube responder, para mim não era uma questão de dias, já não...eram perguntas mais complexas, não por isso mais pertinentes, acerca do futuro, do destino, do que fazia sentido.
E assim foi, até o dia em que comendo chocolate e lendo um livro me descobri presa de uma textura. Um rosa pálido, aveludado, onde eu via aviões levantando voo, livros europa-américa desbotados, e um armário que sempre achara lindo subitamente clichê. Nesse veludo, eu via a escova de cabelo de prata, a minha avó frente ao espelho, silenciosa e orgulhosa, sem que isso tapasse como tinta, os cabelos brancos de sua tristeza.
E nesse veludo rosa pálido eu me vi pequena, curiosa, e cheia de interrogações, palpitando debaixo de uma franja castanha e espessa, que hoje, me apeteceria ter...
Hoje seria um desses dias.

sábado, 7 de maio de 2016

tragédia e milagre nos Andes

Tudo branco. Nada mais.
Podia ser bonito, se o olhar fosse rápido. Se olhasse um breve segundo e olhasse depois outra coisa, então ficaria a sensação de beleza.  A beleza às vezes é só a rapidez sobre a miséria. Quando não olhas de relance, quando o teu olhar é longo, demorado, quando o teu olhar procura algo mais que neve, aí… só aparece a miséria.
Neste branco estão os corpos de nossos companheiros, amigos, treinadores, assistentes, hospedeiras simpáticas, a voz de um piloto que aqui tem um corpo curto, acanhado, a sua voz era a de um gigante com asas… Neste branco estão também pais, mães, irmãs de muitos de nós. Uma coisa que nunca ninguém diz sobre o branco, é que ele é a cor da ausência..aqui estão eles: presentes na ausência. 
Tudo isso aconteceu há poucas semanas, no entanto dentro de mim, passaram-se anos. Nada faz o tempo andar mais devagar que ver a tua família, um por um, a cair. Há dias que percebemos que ninguém nos pode encontrar envoltos nesta mortalha, antes mesmo de ouvimos pela rádio como abandonaram as buscas. Ninguém nos espera. Todos os relógios que tictaqueavam a esperança, ficaram sem pilha. 
Algum dia as pessoas que encontrem os nossos esqueletos, perguntar-se-hão de que morreram. Uns da queda, e os outros? De fome, pensarão. Água temos em abundância, é só por um pouco de gelo na boca. Morreremos com certeza, há uma semana que o sabemos. 
Roberto e eu não conseguimos esperar pela morte. Prefiro levar o cálice à boca e tomá-lo de pé, lutando. Ir ao encontro dela. Não é só a fome, nem só o frio…É o branco que enlouquece, prefiro morrer fazendo uma loucura…
Quando caminhas há dias e só vês branco, entendes que o branco é a cor do que não está, mais que a ausência que é algo que fala de existir, o branco, é o nunca ter existido. Só consegues pensar nisso. O branco vai-te invadindo por dentro. O branco é silencioso, é lento, mas não é diminuto, não é escasso, não é irrisório, não é limitado. Uma estepe nevada é a medida do infinito.
Os nossos pés entrando e saindo devagar da neve, pouco a pouco perdendo a sensação do frio, A fome seguiu-nos, até nos encontrar. Nenhum raquítico coelho, nenhuma lebre insignificante, nenhuma humilde águia, só branco.
 O ar entrando breve, rarefeito, encolhendo os nossos pulmões…fazendo de jogadores de rugby, avózinhas enfezadas, cansadas.
Depois do segundo dia sinto que vi o vazio por dentro, vi tanto branco que as cores se apagaram dentro de mim, eu continuo a caminhar porque é tudo o que venho fazendo e não sei parar. O branco deixa-te como uma máquina, o mesmo gesto repetido, repetido, a impossibilidade de não responder. Três dias e continuamos longe do sopé.
Cada passo que damos exige toda a concentração, o pé que afunda, volta mais pesado, embebido em desespero que goteja. O corpo cada vez mais existe em câmara lenta, cada pensamento dura uma eternidade, cada movimento requere uma energia que não se renova. Se olharmos para trás, eles estão ali perto, sabemos agora que é mentira. O branco é mentiroso, engana-te da forma que quer. Olhando para a frente o enigma, nada menor, do tempo que falta, o tempo que conseguiremos ainda resistir. Quero morrer pelo menos no cimo daquela colina, dizer ao branco que lhe conheço ao menos algum miserável segredo…
Branco que brilha, que encandeia. Corta o olho como uma folha de papel, sem descanso, sem sossego, lamina feroz. Queima, nunca imaginei que o branco queima, a pele fica como um pergaminho perto do fogo, vai doendo e estalando até que caí, e depois fica rosadinha como um rabo de bebe, e depois arde como se fosse untada com ácido…mãos, pés, rosto. 
O estranho é que os pés em certo momento deixam de doer, as mãos deixam de se sentir, mas as pálpebras, as pálpebras são o umbigo da humanidade, são as ultimas em se calar, doem em mil tons, ardem em diferentes sabores, resistem até quando nós lhes pedimos que se fechem, que por favor deixem de ver todo esse branco…



quinta-feira, 5 de maio de 2016

Faço de leão. Ele sobe nas minhas costas. Vou de joelhos rosnando, arrastando uma pata e depois outra, vagarosa, pesada sacudindo a juba.
Anda filho vamos caçar uma presa.
Anda vamos caçar uma prenda!
Ele é mesmo o rei da selva...

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Do longo namoro que tenho com a outra Olga, há um momento que se destaca.
Ouvira falar das máquinas de fotos lomo, dias depois, ainda fascinada com tal descoberta saí na estação do Chiado. Esperava-me ali, porque só poderia ser para mim, uma exposição de fotografias lomo.
Sobre o branco do azulejo, que contrasta com o cinzento que não sabemos bem se existe ou não, cores se multiplicavam, movimentos se despiam.
Esta Olga que responde ao meu nome, ficou ali parada, indo para a frente e para trás, ligeiramente nervosa que alguém realmente pudesse vir e dizer-lhe: é para ti Olga, tu sabes, não sabes? Ou pior, que algum adolescente mais vivaço, ou alguma velha bordeando a psicose bruxesca, se chegasse bem perto de mim e dissesse: estás a achar que estão aqui, para ti? e soltasse uma gargalha com jeitos de tornado, e expusesse naquele branco todo as vísceras das minhas ilusões.
Tal medo tomou conta da Olga que era.
Sai rápida e nervosa, procurando o anonimato da luz do dia.
Dentro de mim eu sabia: era para mim, era por mim, era um sinal para que eu fosse a outra Olga.
A outra Olga que eu namoro, como sapatos de verniz em uma vitrina. Para ser ela, não há saldos, não há promoções, não há queima de estoque...diante tal valor, imediatamente me invadiu um nervosismo que desembocou em croiassant de chocolate...coisa que a outra Olga não faria.
Esse dia eu não esqueço, foi uma assustadora janela para a possibilidade de eu ser outra.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Tic tac carambola,
parafusos sendo mordidos por dentes brancos.

Tic tac carambola,
maçã que cai da bolsa da compra, rola pela rua, é esmagada por um carro.

Tic tac carambola,
o gosto da tangerina, antes de estar peluda, antes de estar azeda, quando tem gosto do verão que passa.

Tic tac carambola,
os ponteiros dos segundos todos que passam, enquanto a carambola ticmartelac a minha cabeça.

quarta-feira, 27 de abril de 2016


Cá e lá.
                                                        Viagens escritas a lápis.

João Guilhermino

João Guilhermino Fernandes. Guilhermino não é sobrenome, é segundo nome. 
Até hoje acreditei que essa nomeação realmente fazia de mim alguém extraordinário. Não acredito que me possam julgar por isso, é assim, aliás era assim, sempre foi assim.
Guilhermino era a marca do destino sobre mim. Não era um sinal, uma mancha no cabelo, nem um olho de cada cor que me distinguia dos demais. Era o nome. O segundo nome, ideal para apanhar o público desprevenido. Como te chamas? Joãoooo…GuILHERMino. O interlocutor ficava capturado. Se o interlocutor fosse mulher, mulher interessante, eu pronunciava ainda mais devagar, pondo cara de timidez e vergonha. As mulheres adoram homens singulares que desejam ser a-singulares. Se fosse um exame ou uma entrevista de trabalho pronunciava rápido e com força, para mostrar que me via a mim próprio como um ser completo, complexo, forte.
Joãooo…guILHERMino tinha além do mais um não sei quê de BONd…JAMes bond. 
Nunca me preocupei portanto, demasiado, com ser extraordinário, já me sentia extraordinário.
O curso escolhi-o por practicidade, a profissão também: administrativo. Aqui no Brasil ser administrativo é um pouco como ser JAMes BONd. Dá ideia que se administra qualquer coisa, não há problema que fique sem solução.
Ultimamente, no entanto tenho-me encontrado com um problema sem solução. Tento “dormir sobre o assunto”, mas é o assunto que dorme sobre mim. Qualquer assunto. 
Hoje, como nos últimos meses levantei-me assim, meio zombie,meio João..GUILHERMINO .
Tomei o café que a minha mulher me deixou preparado, deixei o silêncio da casa me acompanhar enquanto engolia as torradas, tomei o duche de água quente que me aproxima, ultimamente, do desmaio, vesti-me e saí.
Saí e voltei a entrar, esqueci-me de trocar a pantufa pelos sapatos. Tinha esquecido a chave do carro também…João amor, não devias conduzir se não dormes o suficiente…ouvi-a na minha cabeça. Omnibûs e metro implicam mais uma hora de deslocação, prefiro o acidente…
No trabalho, administrei o que pude administrar…mails, telefonemas, conversas informais e conversas formais, uma pequena paragem no banheiro para fechar os olhos.
João Guilhermino dormindo no banheiro? Imagino os meus companheiros comentando…no entanto, só fecho os olhos mesmo, não consigo dormir aqui, nem lá, nem de manhã, nem de tarde, nem à noite, nem sábado, nem domingo, nem feriado.
João Guilhermino é extraordinária a sua insónia!! Imagino o que me diria o médico, caso o consultasse.
Retomo administratividades até às seis. Esgotado peço à minha mulher que vá ela, de novo, “extraordinariamente” buscar os meninos à escola. Ligo à minha mãe e peço que ela vá “extraordinariamente” fazer a compra por mim, lá ao minimercado.
Arrasto-me até à garagem, chave na ignição e aquela dor no corpo…o cansaço latejando.
Arranco para casa, trânsito parado, semáforo atrás de semáforo.
Oi!! Você aí, quer que lhe cante uma canção?
A velha desdentada de sempre, suja, suja, suja até a sujeira se transformar na sua pele, desdentada como um clichê de sem abrigo…e ela começa a cantar, apesar de eu abanar a cabeça dizendo que não, que por favor não…
Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última/ E cada filho seu como se fosse o único…*
Senti de repente uma faca no meu estômago, uma faca rasgando-me, devagar, milimétrica. As palavras de Chico, ouvidas mil vezes, me consumiam agora num fervor de bisturi, lentas ácidas, corroendo-me  pele, músculo, carne e parando no osso em um crepitar que prometia cortar mais fundo, cortar ainda mais, atravessar- me como um diamante delapidando o ar. Torci-me, um pouco, tentando acalmar o corte, mas o corte abriu-se mais ainda, o diamante folha de papel começou a cortar braço, peito, ombro, mão, pé, estofo, metal, e o mundo. Doeram os retalhos de mim como uma nódoa negra examinada por uma mãe zelosa, doí-te aqui?ou aqui?
Estremeci de pânico, porque me cortavam assim aquelas palavras, morreu na contramão, terminou de me tocar como parede de cimento toca a um condutor que sai voando do carro que contra ela se lançou.
Parou tudo, por fim. Começaram as buzinas atrás, e a velha louca gritou, Mexe essa geringonça homem!
Tinha uma só vida, aquela. Até o homem da construção tinha pelo menos três. 
Aquela em que eu não dormia, não sonhava, não descansava. Deitado do lado daquela mulher que eu já não reconhecia, correndo para manter aquele filho que só chorava e embirrava com tudo, tinha aquele trabalho em que administrava coisas que não me interessavam e não eram minhas…aquela casa igual a todas do quarteirão, aquele carro sem autocolante para evitar o sequestro, aquela roupa uniforme…
Só tinha aquela vida, que não era extraordinária, não tinha James Bond, nem nada que escapasse ao fluxo constante para o fim.
Parei na bomba de gasolina e desci para comprar uma coca-cola, que me trouxesse um pouco de ar.
Já lha trago fresca, senhor, qual é o seu nome?
João.
Só João?
João basta.



* Construção de Chico Buarque
** Texto produzido como tarefa para a oficina de escrita criativa

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Olho no olho





25 Abril

Café, hum…como cheira bem, melhor sem leite para não dar puns…manteiguinhaaaa? Não, hoje queijo de minas frescal, que disto não há lá em Portugal, que poeta que tu és Mariano, Camões do pequeno-almoço…pão fresco, será que ela comprou?Aqui está…Emília, hoje compras mais frescal?
Sim Mariano se Deus quiser.
Deixa-me rir mulher, sempre com Deus no bolso, “Deus é a nossa mulher-a-dias”**!
Bolso, carteira,cartão da escola, cartão azul, caneta, caderno. Ahhhh 5b hoje vocês vão levar uma sacudidela à Mariano!! O tuga sem dedo a falar mal da religião no primeiro dia de aulas, do colégio católico, só eu…
Até logo Emília, abraços à narizinho e ao visconde. 
O carro? Ah ali. Vamos lá ver que põe nesta pilharanca de rádio…pufff sertanejo nem Mooooorrrtoo.
Como será agora a fábrica? Mariano, piolho, se queres continuar a ler os teus livros tens que ir fazer umas horas à fábrica. Ela triste a tentar dizer-me coisas difíceis com ligeireza…porque será que ela usava sempre aquele cabelo preso, aquele avental azul…que será do avental azul? Ela deve-o ter usado até ao final…A Júlia deve a ter vestido bem, lá era costume voltar a vestir o vestido de noiva, não era?…será que a Julia o levou no casamento dela? Ai mãe…Tenho que lhes dar lanche, pão e queijo, café. Nem todos os empregados levariam com a mesma descontracção que eu um acidente destes, lá começa a doer o dedo…Porcaria de rádio, deixa ver se anda aí a cassete do Zeca?Zequinha, aqui está… Nunca entenderei como alguém esclarecido, culto, caramba o meu irmão lia, lia muito, ouvia o Zeca, o Sérgio, tinha o plano de fuga…caramba tinha tudo combinado, o passaporte, o horário, e sai-se com essa de fico aqui e seja o que Deus quiser. No mesmo lugar da cozinha, olha, nunca pensei nisso antes, parece que o cheiro…aquele cheiro a floresta que o Pedro tinha sempre, a camisa de quadrados vermelha, flanela, lavar e andar dizia a minha mãe, e ele sempre com aquilo vestido. Já passaram muitos anos, Mariano…vais chegar à escola com cara de choro? Ele ia ser de nós o mais livre, em Paris ou assim. Eu estava a salvo mais uns anos…só me podiam chamar para a tropa lá para 69. E em 69 já estava tudo diferente, Abril de 69, que pacóvios que somos, um ano e um mês depois dos franciús começarem lá com a algaraviada. O Pedro podia ter estado lá. Mas não esteve, e 69, já não tinha dedo, nem Pedro, nem deus. Já tinha vindo para este país fazer piretes*** aquela escumalha toda. Nada de macaquinhos no sotão. As besteiras que se fazem por crendices…
Boa tarde turma, sou o Mariano Gonçalves e vou-vos dar português este ano. Copiem isto por favor: “ A religião! A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar comum a todos os brutos, o terror.” É do Eça.
Professô, sua mulher ligou, quer que você passe a comprar frescal!
Oh meninos tão de que se riem?!? Diga-lhe que sim!
Esta mercearia é mesmo fim do mundo…Marília, o frescal?
Chave, carteira, frescal que disto não há em Portugal…ora as luzes da camioneta…vamos lá.
Será que ela fez empadão? Hoje é dia de empadão.
Olha-me isto, outra vez deixaram aqui a galinha com a cachaça?! Estes macumbeiros são do melhor, eu tiro, eles põe! Quantas vão?…Quatro ou quê esta semana. Freio de mão. Deixa lá ir buscar mais uma, vou levar para o pessoal da fábrica tomar quando voltarmos. Este pessoal não se convence que é preciso ser muito estúpido para achar que cachaça à beira da estrada serve para mais alguma coisa que para eu levar para casa…Ai esta galinha é a de ontem, reciclam pelo menos. Oh palhaço, baixe as luzes, estou deste lado, mas estou…
E de repente Pedro, eu vi na garrafa iluminada por um segundo… uma mão sem dedo, um velho de nariz achatado, olhos apequenados, sem cabelo, eu vi um velho fracassado, vi que perdi o pai, a mãe, o tio, a ti, a Portugal e à vida que era para ser minha, vi que agora deixarei esta que foi minha para ir para lá tomar conta da fábrica do tio, a mesma que me roubara o dedo..Eu vi Pedro que passei a vida toda a pensar que fazia piretes ao destino, com o dedo que o destino roubara…e sou um velho que bebe cachaça roubada à fé alheia, que se ri do se deus quiser de sua mulher, dos medos de lobisomem de seus netos…a vida fez-me piretes a mim, a ti, a todos…vocês pelo menos não estavam tão sozinhos, tinham o padre pio, o Jesus e o curupira…
Deixei lá a garrafa Pedro, foi-se-me a vontade de rir..Sou um velho a falar com um fantasma, olha Pedro, vou fazer de ti o meu santinho particular…

*Zeca Afonso
** Adília Lopes 

***piretes (gesto de mandar alguém tomar no c.)
 Desenvolvido como tarefa para a oficina de escrita criativa da Noemi Jaffe.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Certa vez tinha entrado numa taberna. Numa verdadeira taberna. Tabernas que inspiram cineastas que as olham desde o umbral da porta.
Na verdadeira taberna, aquela em que ele entrara, só serviam bebida.
Bagaço, wisky de produção enigmática e cerveja. Sagres ou Super-bock.
Chegaram os "de leste" e havia uma outra pilsen que ele não conhecia.
O convite que a pilsen estendia, era retirado com o olhar assim que algum loiro de rosto quadrado cruzava o tal umbral da porta.
O afamado umbral tinha em seguida a clássica cortina de fitinhas, destinada a manter longe cineastas, esposas, membros e fãs do clérigo.
Cruzando o arco-irís o que se encontravam era clichés de homens alentejanos, baixos, entroncados, barrigas pontiagudas e manchas de rosácea escondidas em boinas de xadrez de flanela.
Comida não tinham. Nem azeitona. Nem matutano.
Taberna não é para comer, é para beber.
Cerveja ou bagaço.
E fumar.
Fumar mas não marlboro que isso é para esplanada de café praça do Giraldo.
Fumar é fumar português suave, azul, vermelho ou amarelo.
Ele fumava azul, o mais suave na sua opinião. Pedira então bagaço para reposicionar-se como macho.
Não era bom ter cara de bébé numa taberna, e ele tinha.
Nem mesmo quando ali, naquele descida perdida da Serpa Pinto, em que se sabia, que ele, o menino da Eulália, tinha sido preso por tentativa de violação a uma rapariguinha do liceu.
O mesmo liceu, que ficava na esquina da taberna.
O mesmo liceu, cujas paredes caiadas oferecia um piscar de olhos encadeados a quem tentasse espreitar para dentro da taberna,cinematográficamente, a qualquer hora do dia.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Ele era como o português da piada.
Sentando-se uma vez num lugar do autocarro, encontrava-se impedido de mudar para outro lugar: trocar com quem não era a sua dúvida, ainda que fosse parte da sua questão.
 Ele era como o português é, mesmo, mas o brasileiro não sabe: Comprometido com as suas escolhas a extremos grotescos. Escolhi agora aguento-me, poderia ser a enunciação.
Ele era infeliz, já sabem isso, desde que começaram a ler...claro. Um leitor distraído já teria notado a quilómetros, um leitor como tu, caro leitor, descobriu já uma peculiaridade freudiana neste português, que não era lusitano, e sim brasileiro.
O que significa comprometer-se até às últimas consequências? Ser do corinthians porque um dia, numa festa a mãe o declarou antipalmeirense, viver no mesmo apartamento porque se angustia de dar as más notícias à milenária caseira, comprar na mesma frutaria, a mesma banana nanica, para não ter que dizer ao sr. Carlos que se enganou, ele gosta mesmo é da prata...então não é questão de compromisso é questão de cobardia, dizem vocês.
 Pode ser, aparece pela primeira vez em nosso caderno essa possibilidade. Teremos que investigar. Ainda assim, há exemplos que sustentam a nossa tese, casou com a primeira namorada, trabalha ainda no seu primeiro emprego, compra ainda o café da mesma marca que comprou no dia em que saiu da agência com seu primeiro cheque.
Cobra, ainda, em cheque, e compra café, ainda, assim que recebe o salário...
Ah então é compromisso mesmo, dirão vocês despistados por estes novos dados.
Fica ainda no ar a questão da troca, deixaremos um pouco de mistério por momentos, isso geralmente angustia muito o nosso português de piada.

sábado, 16 de abril de 2016

Ele assistia a tudo impassível. Havia algo de profundamente poético no silêncio. O mundo em movimento, tremendo, chorando, sacudindo-se em seu fogo mais profundo; ou na calma, o sol que desponta o sol que se desmonta. Assistir à vida como quem assiste televisão, não perdão, televisão não...como quem vem um bom filme, num velho e cómodo cinema. Sempre um novo filme, sempre sem pagar entrada. Há uma espécie de provocação nisso, um pequeno esgar de sorriso irónico, um profundo desdém.
Que impeachment nem meio peach, ele não sabe, ele assiste. Não torce, não grita, não se posiciona.
Um pouco previsível todo este filme, não por isso menos entretido, nem por isso mais emocionante.
A poesia no entanto, ainda está por encontrar...

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Chegando a casa, nada conforta mais que um bom banho...embalagens de shampoo já fossilizadas, que reconhecemos com um rápido olhar. As toalhas com o cheiro do amaciador que escolhemos, uma e outra vez. Há sempre algo que falta e algo que sobra: as contas que se apilharam à entrada e que recordam a Mafaldinha dizendo ao pai que enviaram muitas contas ao seu antigo eu, e falta água, coca-cola, cerveja ou pirulito.
Voltar a casa é assim, entre a nostalgia e a alegria, o dia a dia.

domingo, 3 de abril de 2016

"Reo-reo."

Ele espera através de um gesto explicar todo um universo.

Eu não sabia que sabia o que é um reco-reco.

Ele não fala muito bem, ainda, esqueci-me de referir.

"Reco, reco mamãe!"

E lá de um canto escondido, de uma memória que não parecia nem me pertencer, oiço-me dizer:
Claro, da capoeira, o reco reco.

Ele sorri aliviado que a sua intérprete no mundo não lhe tenha falhado.

Eu sorrio feliz porque sou sua intérprete.