sexta-feira, 3 de junho de 2016

doença do doer

Dois irmãos: um crocodilo, um homem. 
Um nasceu na Escócia, outro na Bretanha.
 O mar de um é diferente do mar do outro.
 Se a tocarmos uma nos gela, a outra nos escalda de frio.

Warwick e o Homem-sem-nome são filhos do mesmo pai. Esse pai era uma gaivota. Voou demasiado rápido para demasiado longe, deixou suas mães com ovos por chocar. Uma pariu com dor e a outra sangrou-se sem se dar conta.
Encontraram-se uma só vez Warwick e o Homem-sem-nome. No funeral do pai.

O pai Gaivota morrera em Gales, era especialista em renunciar a raízes, deixava um ovo e tinha que partir, jogando uma espécie de passa ao outro e não ao mesmo com o destino.
Uma gaivota morta, pensou o Homem-sem-nome, chegava até as suas narinas um gás fétido e adocicado, quase fresco por momentos, quase doce por outros. O cheiro do mar negro, pensou, uma gaivota morta, uma alga de mortalha. O cheiro era tão forte que invadia todos os sentidos, parecia ser visível, ser palpável, ter gosto de horror ser veludo de tristeza. Era a morte sem doença. O seu pai morrera de uma morte diferente da sua, isso era o que ela diria…
O funeral era um carrossel, desfilavam desconhecidos, gastos como cavalos de ferro à beira mar. Entrando e saindo, entrando e saindo.
O Homem-sem-nome chegara cedo porque nunca se atrasava. Warwick chegou tarde porque nunca se apressava. O Homem-sem-nome chegou sem mais, Warwick chegou demais. 
Grande, verde, com cheiro de limo em pedras frias. Entrou rompendo o carrossel que redondo girava em um burburinho, como uma onda que esquecida de si desmaiava na areia, uma viúva e um filho, uma viúva e um filho, um filho e uma viúva…
Entrou espirrando, um espirro e outro e outro. Warwick pisou o Homem-sem-nome.

O seu pé está sobre o meu. E daí? Daí que não pode. Então tire-o. Não posso, porque estou aprisionado pelo seu pé que é mais pesado que o meu. Então se não o pode tirar porque se queixa? Não é assim que deve ser, não é o que vejo, você se pisa, pede pede desculpa e tira o pé. Não sei de nada disso, se eu piso…pisei! Você é bem filho de seu pai. E você? Eu não sei o que é ser filho de meu pai, estou descobrindo agora, com o seu pé quebrando o meu. Tem dor? Tenho a sensação de que algo está como não deveria estar, não sei da dor. Não conhece a dor? Não, e você? Não.


Silenciosos olharam-se. Algo parecido a um reconhecimento. Um espelho descosido, quebrado, estilhaçado, mas se tocassem com sua mão ou sua pata rugosa…não produzia corte, não ardia, não cedia.
O corte já tinha sido, em algum lugar.

Você trouxe a sua mãe? Não, e você? Não, quer um copo?

Warwick mostrou a sua garrafa de whisky, escondida na sua saia de lã áspera com espaçados quadrados.
Malte antigo do ano que descasquei.
O Homem-sem-nome estendeu o copo, mas Warwick apontou com a garrafa as penas do pai.
Aquele salafrário nunca me conheceu, só venho para o conhecer hoje. 
O Homem-sem-nome seguia com seu copo a garrafa de malte, ansiava pelo cheiro agradável da bebida, supondo que ela afogaria todos os outros.

Eu vim para saber da morte, disse por fim baixinho, descendo o copo, desistindo do brinde com seu meio irmão, ela diz que eu tenho a doença da morte…Que estupidez é essa? A doença da morte é não amar nunca, não desejar, morrer sem ter uma vida que desague no morrer…Você dormiu com ela? Sim…Ainda assim andam com essas conversas da treta?

Homem-sem-nome não soube que dizer.
Warwick tomou o resto da sua garrada e mostrou-lhe como a sua cauda ondulava até à gaivota.
Podia-te comer, morder, estilhaçar…Ouviu o Homem-sem-nome.
Warwick saiu rompendo o carrossel, sem se despedir.


Tem a doença da morte, a doença de doer, o homem-sem-nome pensou.

Exercício para curso Noemi Jaffe na casa do saber

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