segunda-feira, 23 de maio de 2016

Filó e a sua ideia V

Fomos ficando sem pão, vimos a manteiga rançar, e o café que eu passei de novo secou nas taças de todos os dias. O relógio da cozinha acusou o atraso, e o Zé não se mexeu.
Não vais chegar atrasado?
Vou, mas está tão legal a nossa conversa...
Olhámos um para o outro...
Vi lá bem no fundo do seu olho castanho, algo amarelo, ou dourado, algo que entendi como uma faísca, como um fogo, como um incêndio. Algo que não estava quando estendi a toalha lavada sobre a mesa, algo que não estava ontem, nem anteontem, nem antes de antes de antes de antes de ontem.
Já teria visto algo assim no Zé?
Claro que sim, o dia em que nos beijamos pela primeira vez. A primeira vez que viu Mari e Amandinho. O dia em que comprou sem primeiro carro.
Lembro desse dia em especial...eu estava angustiada com entregar todos nossos pertences a um desconhecido, ainda mais para alguém que vendia um mercedes tão antigo, em terceira mão.
Zé no entanto, estava confiante, estava cheiroso, se vestira bem para a ocasião. Foi nesse dia que saímos a passear pela última vez juntos. Nós em nosso mercedes, que se chamou Carmem em honra da avó espanhola de José. Fomos com Carmen até uma lanchonete, tomámos cada um uma cerveja black, um supimpa com bacon extra, e sorrimos muito. Antes de voltar a casa parámos a beijar-nos, a sentir-nos, a saborear-nos como adolescentes em filme americano. Umas semanas depois descobri que Carmen tinha trazido um presente...tristemente os motores deste se apagaram bem antes dos dela.
Fora essa a última vez que os olhos castanhos de José falaram de fogo...
Quieto na sua cadeira, olhando-me fixamente, resistindo-se a levantar-se, a correr para o trabalho, para a hora marcada, para a rotina...José tinha percebido. José tinha lido a minha ideia. A ideia que eu não contaria jamais.
Fiquei a olhá-lo assombrada, no meu olhar não havia mentira. Não diria, jamais, nada.
E você nem sabe Filózinha como são alguns de nossos clientes habituais. Tem um moço que só veste de preto, sabe aquele preto que parece pele de vaca mas não é não...é imitação da riachuelo, sabe qual é? Esse vem toda a quinta feira, traz um monte de bilhetes dentro de um saco de papel da farmácia...sempre deposita quantias abaixo do limite a declarar, eu teria que chamar até o chefe para assinar ele o depósito, mas o cara traz sempre dois reais a menos...dois reais Filó. Por dois reais eu assino o depósito, por dois reais eu não posso fazer perguntas...e o cara nunca diz muito, magro magro, parece um vampiro, sabe como é Filózinha...como dos filmes. Esse é o de quinta feira, sem dúvida é quem deposita mais...

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